A SUPERSTIÇÃO DO TALENTO
Em Portugal um literato do qual se propale que estuda fica por esse facto desacreditado perante a crítica e perante o conceito público. Tem-se em Lisboa a respeito do trabalho intelectual a estranha opinião de que só trabalha quem não tem talento. E daqui chegam a deduzir que tem talento todo aquele de quem se prova que não trabalha.
Assim as sólidas e incontestáveis reputações de capacidade de espírito fazem-se nos botequins.
A imortalidade - do Loreto ao Rossio - repousa entre as dez horas e a meia-noite num banho de cerveja da pipa.
A fonte da ciência na Baixa é o pote do Martinho.
Os moços do Café Central, se lhes pedirdes uma celebridade literária, virão chamá-la à rua como se chama um trem.
No Grémio supõe-se que não sabem ler nem escrever os sujeitos que não passam ali a noite, a fumar, até às duas horas.
Ainda havemos de ver indivíduos atestarem os seus merecimentos literários por esta forma: "Fulano de tal, bacharel formado em Direito e freguês do Áurea".
Apareça um temerário que se atreva a suspeitar de talento alguém que passe as noites em casa.
Oh! - responde logo o coro da opinião - é um bruto de estudo, é um quadrúpede de trabalho, é um carnívoro de leitura !
Segundo esta convicção essencialmente nacional, a ociosidade é a mãe do génio. O Chiado, supremo aferidor da legitimidade dos nossos direitos perante a fama, só nos entregará de boa mente aos braços da glória depois de se encher de razão para afirmar do eleito: "Aí vai um de quem não consta que abrisse livro".
Ramalho Ortigão - As Farpas - Setembro, 1871
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