segunda-feira, 13 de junho de 2005

VASCO GONÇALVES, EUGÉNIO DE ANDRADE, ÁLVARO CUNHAL

TABERNA
1965

I

Vi hoje o velho.
Comia sopa, e lia o jornal.
Por aonde, que caminhos terá ele percorrido ?

Tinha saudades dele.
É uma presença, activa, da desgraça
que me é útil ter presente.
Para que me não esqueça, nunca, dos que sofrem.
21-IX-65

II

É bom que o velho tenha voltado.
Morava algures, numa casinha.
Uma casinha suja, por esmola.
Roubaram-lhe - várias vezes - as ferramentas.
Era pintor de profissão.
Se bem que, sua profissão verdadeira
era ter aprendido
a deixar de chorar.
Agora, suas últimas vontades
eram dividir com os outros
um pouco do amargo (que banalidade ...)
pão da existência.
Porque, o que não é banal, embora o seja,
é ser bom e ter a toda a hora
uma espingarda apontada.
O velho sabe disso. Foi por isso, talvez,
que mudou de casa.
Nada lhe servem, porém, seus medrosos cuidados.
Eu sei que em qualquer parte
desta cidade enorme que o espera
hão-de cuspir-lhe - vómitos - na cara
hão-de despi-lo - seco - em carne viva
hão-de prendê-lo ou enxotá-lo
como se enxota uma mosca:
Zumbindo, a mosca foge,
e o incómodo, burguês, desaparece.
Certo é - não me iludo! - que os mesmos proletários
se sentem picados, vexados, aterrorizados com as
moscas.
Por isso a miséria é geral.
Por isso - eu sei - o velho muda
todos os meses da casinha ignota.
Por isso o escarnecem, subtilmente impunes.
È por isso que o velho cheira mal.
Eu sei, e calo-me.
Tenho pressentimento
de que o velho - um dia! -
há-de aparecer transformado
num jovem anjo vingador.
Porém não acredito que isso seja
feito com balas ou pressentimentos.
Será obra - acredito - dum esforço comum
que tem o seu impulso
mesmo no centro do coração do mundo:
no ponto, exacto,
onde o coração do homem
pulsa solitário e livre.
Ao velho eu anuncio
sua ressurreição
numa manhã de chuva,
- Quer um copo de vinho?
21-IX-65

III

Que nojo eu tenho das palavras !
A realidade é outra.
Eu não tenho o direito
de misturar a minha vida
à do velho.
21-IX-65

IV

Não sou homem para grandes alegrias.
Arrependo-me sempre.
Cavei em mim uma cova.
Não tenho outro remédio
senão observá-la.
22-IX-65

V

Perturba-me esta ideia em que o velho se expande.
Sequioso. Sem cansaço.
Penso que é demais para aidade dele.
Que algum dia adoece. E que morre. E depois ...
Preocupa-me que ele adoeça. Que não tenha que comer. Que não tenha quem o trate.
Inquiro - vagamente... - das razões que o empurram, que o determinam.
Já sei que sou levado, sem querer, a pensar mais a sério
na situação presente, e futura, do velho.
Sei que é fraco, volúvel, gosta da bebedeira, tem horror às mulheres.
Sei que os seus olhos fundos não nos olham de frente
e esmagam, circunflexos, qualquer pequena ou grande simpatia.
Sei que não olha, nunca, devagar.
Sei que se esconde, a tempo; que foge da chuva, sem
capote; que é capaz de estar nu
o dia inteiro
diante da janela.
Um dia confessou-me que era doido.
Que a família, pequena, vivendo na província
estava convencida porque ele a convencera
de que era rico e, como tal, vivia num palácio.
Que tinha vários doidos, lindíssimos,
que o lavavam de noite e de dia
com perfumes sagrados: de sândalo, de orvalho, de amendoeira e feno.
Que a família sabia que à porta do palácio vicejavam
duas mágicas flores de encantamento.
E que à noite, às horas mais felizes,
as estrelas sinuosas e distantes
entravam todas pela janela aberta, humedeciam o chão engordurado, despedaçavam-se de encontro às paredes vítreas, faziam desfazendo retratos nas paredes, subiam e desciam como papagaios de papel multicor
e adormeciam o velho, deitado de costas.
Dormir, nunca dormia.


Eu que conheço o velho,
que tenho pena dele,
que o ajudo a pentear a cabeleira cheia de piolhos
- desejo, peço a Deus, que o velho morra.


Há coisas suficientes na terra
que precisam, deseja, ansiosamente esperam
que o velho morra. De repente, melhor.


Assim se cumprirá o que, segundo o velho, fora dito:
Que na soleira da porta, com a pedra amolgada
pelos sinais dos pés dos jovens seus amigos:
O velho me surpreenda, sorridente,
a analisar os traços do seu rosto.
22-IX-65

VI
Tambem eu dormi em muitas casas.
Todas elas não minhas. Todas elas alheias.
Todas elas com um pássaro vagabundo
piando, horas mortas, dentro de casa.
Casas sem repetição. Únicas. Inimigas.
Não iguais aos meus versos que repetem
ah! este miserável constrangimento de existir.
22-IX-65

VII
Vamos dar hoje um exemplo ou uma lição de vida -
me diz o velho, balbuciante.
Deita-se, ao comprido, na cadeira.
Inventa uns modos que não são os seus.
Pega no copo e, a seguir, suspende
o gesto, ambíguo, do levar à boca.
"-Gosta de gin?"- pergunta.
Depois reclina-se, inclina-se, gasta
os seus últimos propósitos de pessoa séria.
Vejo-o, logo a seguir, de rastos.
Não está bêbado: murmura!
Murmura coisas, dizeres ininteligíveis:
suor,fruto,flor,mão,carrasco,virtude,manifesto,tropa,colcheias,sombra,silêncio,solidão,mãos postas,virgo,lodo,saxofone: tudo numa voz que, éclaro, não se percebe donde vem: se, da casa ao lado (com putas e homens sérios), se de dentro d`algum (disforme!) corpo de outrora belo:continuo:
O que o velho continua dizendo ...
pouco me interessa. Conheço a sua voz
Já sei que, tarde ou cedo,
amanhecerá amarrado.
Agora, fico calmo. Nada me interessa o velho. Somente que percebo, entre os cabelos ralos, a quase doce cicatriz.
Também eu me distendo, ao comprido, no solo.
Também eu o afago.
Contamos muitas coisas que ambos por nós passaram:
tevemos, felizmente!, muita sorte:
andámos de barco.
Faz ele a descrição (minuciosa) dum barquinho
onde havia trezentos marinheiros todos malucos e -acrescenta- todos inigualavelmente besuntados
de alcatrão, e marfim, e luz difusa.
Cala-se, por uns instantes. Brilham, na sombra, seus olhos (já os descrevi, nada adianta; nada adianta ter olhos assim, irremediavelmente brilhantes!; a luz não lhes pertence; é deles, e não é; simplesmente os olhos dele.)
Depois -porque é preciso- tomamos largas e fortes goladas do gin que o satisfaz.
Eu tomo o auto-carro. E digo adeus ao velho.
Já sei -perfeitamente- o que acontecerá:
Que a lição consiste nisto:
Em saber se, o que devemos prreferir
é: perseguir uma forma, desconhecida e bela, andando pelo ar! - ou:
contentarmo-nos, às tantas, com reduzir a letras de encomenda
a enorme e dispersa confusão
que vai dentro de nós.

Considerem primeiro -diz o velho, por último-
que amor não há, sem ódio.
Que a vida é traiçoeira.

Mas que -coisa curiosa- só se vive uma vez.
22-IX-65

VIII
Bebendo tudo passa. Esquece tudo.
Somente que, o prazer não é:
forte de mais para o sentir nas veias.
O velho diz que o que mais o repugna
é sentir que, nas veias,
o que lhe corre é água.
-Preferível -digamos- um corpo que, de súbito, se atravessa na rua-
ou a longínqua imaginação desse corpo?
22-IX-65

RAUL DE CARVALHO

1 comentário:

Anónimo disse...

OMG! Thank you for this.