sexta-feira, 6 de janeiro de 2006

NÓS POR CÁ TODOS BEM
Temas do rectângulo

Hoje, e ao longo do dia, vamos ter várias doses de "As Farpas".
Façam as actualizações (já lá vão 135 anos !) e tirem as vossas conclusões.


"E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farça que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos; o país é espectador distraido: nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e acha-os todos impuros e nulos; não se interessa pelas cenas, e acha-as todas inuteis; não se interessa pela decoração e julga-a ridicula. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder vêr teve que pagar no bilheteiro !

Pagou - já dissemos que é a unica coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que não o defendem, padres que rezam contra ele. Paga áqueles que o expoliam, e áqueles que são parasitas. Paga os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.

E em recompensa, dão-lhe uma farça, com orquestra e lustres.

No entanto, cuidado ! Aquele pano de fundo não está imovel: agita-se como impelido por uma respiração invisivel; alguém de certo está do outro lado. Enquanto a farça se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, medita, agita-se, prepara-se, arma-se talvez.

E quem é esse alguém ? As vossas consciências que vos respondam. O que apenas podemos dizer é que não é o sr. bispo de Viseu.

E não obstante como tudo parece tranquilo, feliz, repousado, coberto de luz! os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério todo encolhido diz aos partidos - chut ! As secretárias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter maneja sorrindo as quatro espécies. A policia, torcendo os seus bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado roe as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os seus cães vádios. O ar azula-se. As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem à tanto tempo que devem estar no centro da terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos".

As Farpas - Maio de 1871
Eça de Queiroz-Ramalho Ortigão

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