terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

CUMPLICIDADES NO RECTÂNGULO
Cartas a Marcello Caetano
















David Mourão Ferreira para Marcello Caetano

Lisboa, 3 de Novembro de 1971

Excelentíssimo Senhor Presidente

Só agora, depois de ter a certeza de prosseguir esta obra a que imprudentemente meti ombros, é que me arrsico a oferecer a Vossa Excelência os primeiros fascículos publicados, - até porque esses primeiros fascículos, englobando o capítulo referente à poesia grega, constituem já uma relativa unidade.
No entanto, desde o início da publicação, tal oferta fazia parte das minhas mais imediatas intenções: é que ela para mim representava, antes de mais, um indispensável testemunho de renovada homenagem e um tributo de elementar gratidão. Com efeito, e como Vossa Excelência muito bem sabe, nunca semelhante empreedimento haveria sido possivel - pelo menos na sua primitiva forma destinada à Televisão - sem a efectiva política de abertura cultural que, nestes últimos três anos, se tem devido à acção de Vossa Excelência.
Não quero todavia dizer com isto que tudo se encontre já, em tão melindroso campo, naquele estado absolutamente satisfatório, capaz de corresponder, em primeiro lugar, aos próprios desejos de Vossa Excelância, e, seguidamente, aos dos restantes intelectuais portugueses verdadeiramente isentos e verdadeiramente dignos desse nome. Mas sou o primeiro a reconhecer que o governo de Vossa Excelência, através dos Ministérios e Serviços competentes, tem geralmente enviado os melhores esforços no sentido da despolitização que se impunha, enquanto (ai de mim!) não posso dizer o mesmo de alguns sectores da nossa intelligenzia, que se têm obstinado - Deus sabe por que motivos - numa permanente táctica de obstrução, que me parece altamente estéril e nociva.
Não ocultarei, pois, a Vossa Excelência que tenho sofrido, nos últimos tempos, constantes decepções - e da parte, muitas vezes, de quem menos esperava. Mas têm-me sido salutar auxiliar e precioso refúgio esta própria imersão no passado poético da Europa e eata porventura quimérica tentativa de procurar verter, como dizia Menéndez y Pelayo, añejo vino en odres nuevos.
E é justamente o produto de um primeiro ciclo desse labor o que me atrevo a depor agora nas mãos de Vossa Excelência, pedindo-lhe que me autorize a enviar-lhe doravante os subsquentes fascículos à medida que forem aparecendo - e pedindo-lhe, sobretudo, que veja apenas, em tão insignificante oferta, mais um preito da elevadíssima consideração intelectual e da estima muito sincera
deste seu grato admirador,
que respeitosamente se subscreve

David Mourão Ferreira

in: Cartas Particulares a Marcello Caetano
Prefácio e organização de José Freire Antunes
Publicações Dom Quixote

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