domingo, 19 de março de 2006

"O MUNDO A SEUS PÉS"

ARS LONGA, VITA BREVIS

Hipócrates

Gustave Caillebotte

Paris: A rainy day

1877

The Art Institute of Chicago

É meu costume preparar com o cuidado e a antecedência devida as minhas participações aqui na Formiga, por puro perfeccionismo que aplico tanto ao que faço como ao que exijo dos outros. E embora tivesse em mente dissertar sobre este quadro de Gustave Caillebotte, tal não me foi possível, o que desde já lamento. Pensei entretanto e perante o avançar da hora, falar de trivialidades com o tom mais acre que conseguisse, ou até mesmo falar de coisas que desconhecesse e que os outros desconhecessem pois a confrontação com a minha mentira ou incapacidade seria mais tardia ou até inexistente. Também me ocorreu falar de coisas que sei e que me dão a certeza e a segurança de não ter comentários indesejados e começados por “lamento dizer-lhe mas a sua informação não está totalmente correcta pelo que sou obrigado a corrigi-la…”, mas não me apetecia.

E como nestas situações embaraçosas e intimidantes que vivo sempre que estou perante uma folha de papel vazia e que pede para ser preenchida da melhor forma, e o monitor a tremelicar, disfarcei voltando a cabeça para a esquerda (depende, às vezes viro para a direita, sempre para o lado oposto do meu interlocutor caso seja um ser humano). Dei com os olhos num caroço de maçã pousado há duas semanas em cima do despertador, sem sinal de moscas ou formigas, como um fóssil bem comportado, ou como um santo que, por a sua carne não entrar em decomposição, chega mais depressa ao lado do Altíssimo. Pois… mas não podia dissertar mais sobre um caroço de maçã do que isto. Fiz então um arco com o olhar e parei nos meu pés, algo que está dentro do fisicamente possível uma vez que me encontrava sentada em cima da cama, com as pernas esticadas e o computador no colo.

Palavra que queria poder escrever que eram uns pés bonitos, mas não são. Um dia um médico disse acerca deles: “você tem uns pés romanos”. Ao que eu pensei: “Isso é bom ou é mau?”. Afinal era bom. Ter uns “pés romanos” era, segundo o senhor, ter uns pés com os dedos mais ou menos do mesmo comprimento e não em bico, e não ter o pé raso. Ora, se era coisa de que eu me orgulhava era daquela pequena curva na parte interna do pé. Por isso continuei a ir lá, até ao dia em que o médico me diagnosticou uma verruga. Eu achava que aquilo não era coisa para nascer no pé e muito menos naquela idade e quase me arrependi de ter trocado intimidades com o homem acerca dos pés romanos. Dos pés romanos só conhecia os escrúpulos; ou seja, “escrúpulos” era o nome dado às pedrinhas que se metiam dentro das sandálias dos soldados romanos. (Quem não tem escrúpulos, não tem nada que o incomode, nem um pequeno grão de areia na consciência. Ou então usa botas!). No tempo da ginástica de competição, usava-os muito esticados, em forma de folha de borracheira, tão esticados que só de ir a correr para o trampolim já se me davam cãibras mentais com o medo de não esticar a tempo e bater com os dentes no metal ou tirarem-me valores na pontuação final. Havia também uma queimadura por fricção por andar a experimentar na alcatifa espargatas logo no rescaldo das imagens das competições de ginástica dos Jogos Olímpicos, passadas na televisão e que eu tinha a certeza que eram lá colocadas para me provocar cãibras.

E perante os meus pés e a feiura, baixei os olhos. Lá estava o monitor todo branquinho à espera, uma espera paciente e sem fim voluntário, que alguém lhe colocasse as palavras certas de uma participação sem mácula, num blog de primeira. No entanto, caro leitor foi-me impossível. Face à minha incapacidade só posso dizer que lamento dizer, mas não sabia o que dizer.
(Não consigo postar imagens.)

Nota FB: É assim, Beluga ?

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