quarta-feira, 10 de maio de 2006

BELUGA OU A FORMIGA A QUATRO MÃOS

Lição de catequese ou “para quem não fez a escolinha toda”:

Este é um post aborrecido, uma vez que o que aqui vai ser escrito já foi lido por todos aqui e ali, às vezes comentado na TV, referido por quem lá esteve e por quem lá não esteve, antes e depois do restauro/limpeza de um canal de televisão japonês, com turistas fartos e na solidão da manhã de um dia de trabalho.
Em 1535 o Papa Paulo III encarrega Miguel Ângelo de pintar a parede principal da Capela Sistina. O trabalho resultante desta ecomenda foi um fresco de tirar a respiração pela grandiosidade, pelo poder esmagador das cores, pelo mundo onírico a que nos reporta, pelos detalhes. E não tendo eu o poder de descrever como o Juízo Final é ainda mais arrebatador do que a a Cúpula do Duomo de Florença, fico-me pela iconografia, área onde sei que pelo menos não vou enganar o leitor nem “meter o pé na argola”. Se o fizer, devolvo-lhe o seu dinheiro.

O juízo final é como uma grande ilustração de A Divina Comédia de Dante Aligheri (sepultado na catedral de Florença), ainda que o tempo que medeia as duas obras seja portador de mensagens muito distintas. Observamos isto no dramatismo de toda a cena que é povoada de personagens contorcidas, algumas com chifres como sátiros, corpos de costas para o observador como que em negação (principalmente na parte inferior da obra) e nos pequenos pormenores. E o que nos detem são os pequenos pormenores. No canto superior podemos observar figuras que transportam os símbolos da paixão (representação frequente, ver Mantegna, por exemplo): a cruz, e a coroa de espinhos no lado esquerdo, coluna e lança com esponja embebida em vinagre no lado direito.



E toda a obra se divide entre o lado direito e o lado esquerdo de Cristo: Maria é a personagem que está imediatamente ao lado direito do Salvador e identificamo-la como sendo a mãe de Cristo não só por causa do manto azul, mas pelo conhecido salmo: “À Tua direita Senhor, a Rainha dos Céus, ornada do oiro mais fino”. Ainda do lado direito, S. João Evangelista e todo um conjunto de personagens que parecem mais iluminadas pelas cores da pintura que as que se encontram à esquerda sendo que todas elas são conotadas com santos, anjos ou personagens do Antigo Testamento. Entre elas, e de costas para quem olha, temos Santo André que segura uma cruz curiosa; tem os braços de igual comprimento, sendo este o seu símbolo (Santo André foi crucificado numa cruz de braços iguais, a cruz de Santo André). Entre Maria e Santo André encontramos uma figura com outro símbolo da Paixão: a escada. Já no que diz respeito ao lado esquerdo de Cristo, podemos ver S. Pedro, facilmente identificado por segurar as chaves do Céu.


O santo que segura a pele esfolada é São Bartolomeu que é assim representado uma vez que foi esfolado vivo.


Da mesma forma a planta do Escorial é em forma de grelha uma vez que S. Lourenço, a quem o Escorial é dedicado (até se diz S. Lourenço do Escorial) morreu queimado – conta a lenda que o santo disse que ainda não estava suficientemente “grelhado” e pediu para o virarem. S. Lourenço encontra-se neste fresco por baixo de S. Pedro a segurar uma grelha. Na mesma direcção de S. Pedro mas quase no limite da obra podemos observar uma figura humana masculina gigantesca que segura uma cruz. Esta figura é identificada como sendo aquele que ajudou Jesus a levar a cruz ao Calvário. Logo abaixo e agachado está S. Sebastião que segura numa das mãos o símbolo do seu martírio – as setas – e Santa Catarina de Alexandria que agarra na roda (Santa Catarina morreu na roda de espinhos, uma roda de tortura. Muitos edifícios religiosos dedicados a Santa Catarina assentam em planta redonda).


Duas pessoas ficaram ligadas negativamente à história deste fresco. Uma foi Daniel da Volterra, o pintor encarregue pela Congregação do Concílio de Trento de colocar “paninhos” sobre os corpos nus que exalavam uma falta de pudor passível de punição divina e responsável pelos mais profanos calores humanos. A outra está na própria obra e, apesar de o estar pelas piores razões, é a única personagem humana dentro daquela encenação.


Chamava-se Biagio da Cesena e era informador do Papa, uma espécie de fiscal das obras que fazia pressão contínua com o humanista para que este cobrisse as figuras e terminasse rapidamente o fresco. Miguel Ângelo deu-lhe um lugar de destaque e muito baixo do de Cristo: fez dele Minos, um dos juízes do Inferno (de facto a figura está situada perto da porta que dá acesso à capela), que se cobre com a sua própria cauda animal. É claramente uma alegoria negativa uma vez que esta personagem terrena é parcialmente transformada em animal, e por isso, acarreta com o pior dessa condição, bem como com o pior da condição humana. A Biagio nem os paninhos chegavam. Biagio da Cesena faz parelha com Caronte, no centro do fresco, em baixo, ao esperar pacientemente as almas que levará no seu barco até ao juiz.
Lição terminada. Lavem os dentes, façam as vossas orações e boa noite.

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