quarta-feira, 31 de maio de 2006

BELUGA OU A FORMIGA A QUATRO MÃOS

Um país à espera de Godot

Tal como uma das personagens de “À espera de Godot”, também eu inicio este texto/carta com um trágico, porém não irreversível, “nada a fazer”. A grande diferença é que numa peça de teatro, há forma de “dar a volta ao texto” enquanto na vida real, nesta que vivemos, há pouca vontade de dar vontade ao texto. Parece que a maior parte das pessoas – governantes incluídos e não apenas governantes, como muitas vezes temos tendência para dizer – para além de achar que não há “nada a fazer”, acredita também que não há nada que possa ser feito. Ou que valha a pena o trabalho de ser feito.

Esperamos, tal como as personagens que esperam Godot, não um salvador de barbas brancas, mas uma esperança, uma prece, algo que nos tire do marasmo e da boçalidade em que vivemos sem que para isso seja necessário um passo nosso fora da rota que nos leva para a praia ou para as novas coutadas (Corte Inglês, Centros Comerciais que competem entre si pelo numero de metros quadrados asininos, logocratas que compram a felicidade à saída do metro da Pontinha a emigrantes).

Os funcionários arrastam-se nos serviços e saltitam de baixa médica em baixa médica, baixas estas que fazem adivinhar doenças muito amigas, uma vez que as mesmas permitem a união entre fins-de-semana prolongados. Uns, porque a idade o justifica e o corpo pede, preenchem os papéis, com uma celeridade que não se verifica para outros requerimentos, para o merecido descanso que se denomina “Reforma Antecipada” e que deixa na boca um gosto acre por não “ser por inteiro”. Outros pedem a mesma Reforma Antecipada por incompatibilidades com as chefias, às vezes em pendências justificáveis e provocadas para afastar um funcionário em detrimento da promoção de outro.

Para colmatar as baixas sem retorno recorre-se à mão-de-obra supra qualificada que em nada pode mudar a falta de rasgo vigente, uma vez que o sistema está já viciado. Nada a fazer e nada se quer fazer, porque os viciados na Função Pública, arrastam a nádega preguiçosa de cadeira de reunião em cadeira de reunião a propalar objectivos a cumprir em prazos a perder de vista e a suspirar problemas pessoais entre conversas ocas devido à nossa imensa dificuldade de passar da teoria à prática. De resto, há a nossa falta de vontade de dissecar as grandes directivas e transformá-las em objectivos muito concertos, em pequenas tarefas que podem contribuir para o sucesso. Mas o que é que interessa o sucesso se este não é valorizado, se não acrescenta nada à panela no fim do mês, se não nos permite fazer férias no Brasil, se não nos permite mais uns tostões? E isso sim, isso é que interessa.

Em contraponto a este marasmo onde nem sequer dá vontade de fazer seja o que for, continua a existir uma imensa percentagem da nossa população que, ao contrário das estatisticazinhas de trazer por casa por se tratarem de brincadeiras de crianças (não contemplam pessoas que estão em cursos de formação muitas vezes uma imposição dos Centros de Emprego embora estejam na sua maioria desfasados da formação dos formandos, não contemplam as medidas ocupacionais, não contemplam os milhares que já desistiram de estar a correr para o Centro de Emprego sempre que este acena com um postalzinho, uma falsa proposta de trabalho), continua a existir, como disse, uma imensa percentagem que está sem emprego.

Não deveria ser assim, mas a verdade é que estes últimos mendigam emprego nos privados. Há mesmo uma “organização” de gente engravatada que faz entrevistas estupidamente agressivas em mesas de café de centros comerciais, a candidatos que têm de se submeter a provas como a de escrever o maior número de palavras começada pela letra “M” em um minuto: “Manuelino”, “Maneirismo”, “Mistificar”, “Mitificar”, “Mirífico”, “Mirra”, “Mira”, “Mina”, “Míscaros”, “Mascar”, “Maçar”, “Matar”. PUM!!! E digo mendigar, porque apesar dos pedidos, os nossos empresários continuam a achar que fazem um favor aos candidatos em os ter a trabalhar. E fazem-nos acreditar que é uma bênção divina digna de peregrinação a Fátima para ir agradecer à santinha esta maravilha que é a entrada como colaborador para essa grande vencedora da passagem do cartão de crédito da mãe, com lugar assegurado no livro dos recordes, que se chama Zara.
Eu até tinha um destinatário para esta missiva, que se situa dentro de um organigrama, quem desce do lado esquerdo, mas penso que esse destinatário nem sequer saiba que esta mão-de-obra supra qualificada está novamente a prostituir-se nas coutadas, encostada a montras de lojas com currículos nas mãos e o sorriso mais desiludido do mundo, esperando pacientemente o cliente seguinte que lhe vai levar mais um bocado da dignidade. E da paciência. PUM!!

Helmut Newton

1 comentário:

maloud disse...

Que retrato cruel. O problema é que é mesmo assim, é capaz de ficar áquem da realidade.