quarta-feira, 5 de julho de 2006

O despido e o nu

Em inglês a diferença que separa estes dois conceitos é maior. Diz-se então “undressed” e “naked”, sendo que ambos tanto podem ser sujeitos (“Isto é um nu”) como predicados (“Ele está nu”). O primeiro pressupõe um passado mais ou menos distante em que o actor principal era a roupa, uma vez que se refere a um estado que implica o descartar desse mesmo passado. Quem está despido, é porque tirou a roupa e a isso nada mais se pode acrescentar. Pelo contrário, estar nu ou “o nu” enquanto sujeito indefinido – o Romantismo, a maternidade -, não implica o tirar da roupa. Adão e Eva estavam nus no Paraíso e ninguém pensou alguma vez que pudessem ter estado vestidos. Aliás, a folha de videira, e por consequência, o vestuário em si podem ser considerados um castigo divino. Ainda quanto ao “nu”, este é até dotado de alguma dignidade: quem faz nu não se livra de um sorriso matreiro do seu interlocutor, mas há sempre uma aura associada a esse acto de, para além de estar sem roupa, mostrar-se sem roupa, seja na pintura, na fotografia ou nos vídeos porno…
No caso da arte, aquele que nos interessa, há também pinturas de nu e de “despidos”; ou seja, há obras em que o nu tem uma certa dignidade enquanto em outras, nunca foi nu e recuou mesmo a um estado anterior em que o interveniente estava vestido e depois tirou a roupa. Uma não deriva da outra; quem está no patamar dos “nus”, nunca passou pelo dos despidos e estes últimos, por muito que sejam trabalhados na técnica, na base teórica, nunca terão dos nossos olhos a mesma admiração que os primeiros.
Referi já, não aqui mas no belogue, que na minha opinião a obra de arte de charneira para a modernidade (ainda que muito pré, pré), foi a Jangada da Medusa de Géricualt por nela estar retratada e pela primeira vez, a desgraça humana. Seguiram-se outras obras não menos relevantes, mas o que tínhamos até aí era uma idealização da realidade ou a negação da mesma. O mesmo se passou em relação ao nu. O nu anterior a esta época é bem representado por estas duas obras, semelhantes no título e na pose, aproximadas no tempo e na nacionalidade dos seus autores.
Ticiano
A Venus de Urbino
1538
Uffizi, Florença


Giorgione
Sleeping Venus
1510
Gemäldegalerie, Dresden

O título é extremamente importante: não está retratada uma mulher convencional, mas uma deusa, uma entidade incorpórea, que adquire materialidade para nossa alegria. A mão estrategicamente colocada tapa um tímido (existente?) púbis e nada nela nos parece pouco digno, grotesco ou chocante. Curioso é que praticamente no mesmo ano surge uma obra também de Giorgione que faz em meu entender a ligação com o Dejeuner sur l’herbe de Manet. E digo – escrevo – isto porque se repararmos bem, em ambos os casos temos mulheres despidas no meio de homens vestidos. A ousadia de Manet foi colocá-las a olhar para nós e isso é que torna a segunda pintura perturbante. Nem uma nem outra fazem referência à identidade da pessoa retratada, o que nos leva a crer que seriam pessoas comuns, mulheres normais. E desculpem-me, mas mulheres normais e nuas no meio de homens normais e vestidos são na certa senhoras de índole duvidosa. No segundo caso, é ainda mais notório o nosso mal-estar pois estas senhoras ainda nos desafiam. Manet repetiu a fórmula com Olympia, desta vez indo mais longe ao dar um nome à retratada. É uma prostituta que recebe flores de um provável admirador entregues pela sua aia e que espera o fim do trabalho do pintor (ou que o cliente se despache), para ir vestir qualquer coisinha. Estamos então perante mulheres que estão despidas, até porque nestes três casos existem pontos de referência que são pessoas vestidas.
Giorgione
Festa Campestre
1510-1511


Edouard Manet
Dejeuner sur l'herbe
1863
Museé d' Orsay


Edouard Manet
Olympia
1863
Museé d'Orsay

Existem depois aquelas que para além de nuas, ainda se tocam, como a de Caillebotte e a de Bauhus. Em ambos os casos estamos a entrar no mundo privado e íntimo das retratadas, sendo que hoje o segundo exemplo tem mais impacto. Afinal, trata-se da pintura de uma criança (seios por definir, corpo em formação, sem pelos púbicos) que sente os prazeres da carne através dos raios solares. Dentro da mesma espécie de personagens que utilizam alegorias para a masturbação temos o “Êxtase de Santa Teresa de Ávila” cujo prazer do conhecimento do amor de Deus é muitas vezes comparado com o de um orgasmo. É o que se diz, mas se lermos algumas passagens de “O Castelo Interior” da mística, podemos facilmente ver que esta ideia não é assim tão diparatada. Ou as nossas mentes são naturalmente pecaminosas e nada há a fazer.
Gustave Caillebotte
Nude on a couch
1880
Minneapolis Institute of Arts


Balthus
The Room


Bernini
Êxtase de Sta Teresa d'Ávila
1647-1652
Santa Maria della Vittoria, Roma

Na arte os nus e os despidos surgem de quem menos se espera: Otto Dix, Francis Picabia (com um conjunto admirável em número, mas parco em qualidade, de nus/despidos), o ginecológico “A Origem da vida” de Courbet, e o visceral de Dali, o erótico de Fischl…
Otto Dix
Venus
1932


Francis Picabia
Nude
1942
Colecção Privada


Gustave Courbet
The origin of the world
1866
Museé d' Orsay


Dali
Young Virgin auto-sodomized by her own chastity
1954


Eric Fischl
Bad Boy
1981
Colecção Privada

E já na entrada do século XXI voltamos a um nu sem repercussões na consciência, talvez devido ao hiperrealismo: Freud e as suas mulheres em poses comuns, os corpos ridículos de Stanley Spencer, e os iguais aos de toda a gente de John Currin.
Lucien Freud
Blond girl on a bed
1987
James Kirkman, Londres


Stanley Spencer
Auto-retrato com Patricia
1959
Fitzwilliam Museum, Cambridge


John Currin
Bottom
1991
Gagosian Gallery

(Peço desculpa por o post ser tão grande)

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