segunda-feira, 10 de julho de 2006

TEXTO DE OPINIÃO
S/ TÍTULO

Carregamos um país estigmatizado, sujeito a maus-tratos continuados, com registo de décadas de negligência, de corrupção, de oportunismo. Aguentamos expectantes, a importação de um modelo económico, que se prevê globalizante e tendencialmente injusto. Um modelo que promove a fetichização da nossa identidade cultural quando isola, estagna e hiper-valoriza o folclore. Apresenta-o como o registo legítimo, autenticado, de caracterização nacional. Algo a: preservar de forma semelhante à do seu momento de origem, a conservar em arquivo, a manter incólume. Só assim, parece garantir o reconhecimento consensual (mesmo que inócuo). Desoxigenado, o folclore, é eminentemente iconográfico, destituído de crítica e capacidade de resistência.
Em alternativa, propagandeia-se o consumo de entretenimento – apregoado como medida eficaz para a promoção da acessibilidade da cultura. Os produtos culturais que resultam apenas da subjugação mediática são efectivamente desprovidos de aura, de contexto, de recheio, de argumentação. Propõem a subordinação da Arte à categoria de comunicação imediatista, tornando-a vulnerável às imposições da ideologia ambiente. As indústrias culturais esforçam-se por engendrar frivolidades de rápida digestão que, embora salvaguardem algumas diferenças de entoação (por questões territoriais, étnicas, ou outras), se propõem a ser produtos de consumo supra-nacionais. São eficazmente inofensivos porque, demitindo-se de conteúdo, se aproximam da sensibilidade de uma maioria – isentando-a assim de adoptar uma postura de exigência – fomentando o seu alheamento, a sua estupidificação. O entretenimento renuncia a radicalidade da arte para responder com mais agilidade ao objectivo central do sistema: o lucro. A efectiva democratização da cultura não se faz à custa da simplificação e da sujeição do processo criativo.

“A democratização da arte, com todas as suas ingenuidades e banalidades, com a sua mistura de estupidez e tolice, representa um ponto sem retorno na história da cultura” (1)
A democratização da cultura está por cumprir. As propostas das neo-vanguardas estão por cumprir e esgotou-se o tempo da referência conveniente à questão!
O desenvolvimento saudável do processo radical da arte implica a recuperação da crítica, da exigência e da resistência. Quarenta anos são tempo suficiente para nos recompormos da euforia. A poeira assentou e percebe-se que o sistema de dominação da arte não se extinguiu só porque foi ou é denunciado. É indiscutível que a seguir à crítica da institucionalização se promoveu a institucionalização da arte crítica. Que a premissa de fusão arte-vida se cumpre hoje pela aproximação da arte ao entretenimento, que as exigências de democratização e de acessibilidade da cultura passaram a discurso oficial. Que vivemos numa aparente efervescência de vontades, de opções individuais que são rigorosamente controladas, e que estruturam o sistema de defesa ideológico do poder vigente. O dogma da pluralidade, avaliando a prática neo-liberal, corresponde à desactivação dos mecanismos de resistência colectiva e de busca do bem comum.
A voracidade com que o poder vigente incorporou as denúncias da arte – neutralizando-as – mais premente torna a formulação de novas estratégias e reivindicações.

A premissa de democratização da cultura assume pertinência, se a isolarmos do romantismo exacerbado e da carga panfletária que adquiriu na contemporaneidade. À arte não cabe o papel de transformar o mundo, cabe apenas o papel de se transformar a si mesma. Esta, só por si, é inoperante na conquista da democratização da cultura. A questão ultrapassa-a, transborda para a exigência no plano político-ideológico. E é neste plano que temos falhado tragicamente, condenando o país ao obscurantismo e à ignorância. As responsabilidades são múltiplas (expressão que se torna vulgar nas triviais dissertações nacionais), mas hierarquizadas.
Há um responsável máximo pela deterioração da relação dos cidadãos com a cultura – o poder político. É incompreensível que para a arte e para o conhecimento, em todas as suas formas, estejam reservados os piores lugares da sala. Que se trate a cultura como uma preocupação periférica, à qual se asseguram apenas condições primárias de sobrevivência e uma existência exangue. Um ritual de libertação da culpa, de apaziguamento da consciência, onde não há interesse real em salvar, mas também não há quem queira assumir a responsabilidade da morte. Negligência grosseira é querer esquecer que um país desenvolvido não é certamente um país de gente iletrada, inculta, ou distante da arte.
À responsabilidade do poder político, segue-se obviamente a responsabilidade geral. A sociedade civil contém os dirigentes políticos. É ela que os gera, que os alimenta e que os engorda. E tem-no feito de forma automatizada, sem grande exigência (porque se priva envergonhadamente de os confrontar). Se não exige, nem aborta, compromete-se. É cúmplice, mesmo que por ingenuidade, do apartamento da cultura, do desinvestimento na formação integral e sustentada, das sucessivas tentativas de estrangulamento da relação arte/sociedade. Temos (enquanto cidadãos) sido incapazes de pressentir que contribuímos, por inércia, para o nosso próprio empobrecimento individual e colectivo.
Àqueles que, dentro da sociedade, tem uma relação de empatia com a arte cabe uma parte da responsabilidade carregada de atenuantes. Primeiro: porque são estes que sustentam, pela produção e pela fruição, a prática cultural do país – contributo vital. Mais ainda, porque promovem; compreendem a indispensabilidade; trilham percurso no sentido da efectivação do acesso à arte (o ensino artístico, a produção teórica, a investigação, o associativismo cultural, são exemplos). Quem se move no campo da arte contrai, ainda que involuntariamente, um compromisso social.
A intimidade com a cultura implica um diagnóstico lúcido da sua situação, uma análise atenta. Precisamente por isto é que é impossível anular a imputação a quem, apesar de todas as adversidades (e às vezes heroicamente), a impulsiona. Como se, ao compreendermos a necessidade, as exigências e a urgência da modificação deste estado, estivéssemos obrigados a contribuir para a mudança. A constatação que o contributo tem sido insuficiente subentende actuação – falta exigir que se alterem políticas, falta fomentar o contágio social e procurar intervir colectivamente. Há que redobrar esforços para se destinar à arte o papel de exigência colectiva e não o de “capricho de uma elite”.

Tânia Cortez, in Águas Furtadas, nº 9


(1) Mário Perniola, “El arte e su sombra”. Colecção Teorema, editora Cátedra, 2002

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