quarta-feira, 2 de agosto de 2006

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O 78 estava cheio. Cheio de gente, de compras de Natal, de guarda chuvas, de constipações, de cheiros indesejados. Andava no ar um cheiro a chuva e a lápis afiado, aquele cheiro que têm as mochilas quando ao tirar de lá os cadernos, sentimos. O senhor enfermeiro despedia-se com um olhar do serviço de psiquiatria pelo vidro embaciado do autocarro apinhado. Olhava as janelas, as grades, a tristeza e a feiura daquele edifício de metal e pedra, de morte, dor e às vezes, alguma alegria. Pensava já nos seus junquilhos e nas tulipas, nos bolbos, na água para as plantas, na terra que teria de ser mudada, no arroz de tomate com iscas de fígado que tinha feito naquele dia pela manhã e que repousava como uma planta em estufa, embrulhado em jornais em cima do fogão.
(...)
Mal entrava em casa às terças feiras em que fazia aquele turno da manhã e apesar de muito amar os seus junquilhos e as tulipas, a fome estava de tal forma impregnada nele que ao subir os degraus do prédio, a mente atravessava as paredes, o jornal, o tacho, e o seu pensamento experimentava o sabor do tomate, e a textura das iscas de fígado. O corpo não lhe obedecia nem acompanhava a rapidez do pensamento nem a da fome, de forma que se sentia sempre, a cada degrau subido, mais capaz que no anterior e quando já no cimo das escadas com a chave na mão abria a porta de casa, olhava para o lado e via todos os degraus, sentia-se um ser quase pleno cujo zénite seria o abrir, o desembrulhar do presente deixado de si para si na última boca do fogão. Sentia aquilo que sente quem tem um exercício de ginástica para fazer e no início só vê o que ainda está pela frente, imaginando já o esforço, mas à medida que vai realizando sem erro todos os movimentos e mesmo esperando com ansiedade o fim, não deixa de se sentir capaz de fazer muito mais. Quando fazia aquele turno, chegava a casa por volta das 14 horas, ainda com a fome toda natural de uma manhã de trabalho e alguma vontade de comer só pelo prazer daquela rotina habituada.

Pousava com alguma precipitação, estendendo a braço direito na direcção do cabide, o chapéu-de-chuva dois anzóis à frente do chapéu de senhora e ao mesmo tempo atirava o saco com a bata para cima do sofá. Não tinha empregada, mas a casa estava impecavelmente limpa, como se nunca lhe tivesse sido tirado o plástico de protecção, como se acabasse de ter sido estreada, isto porque o tempo que por lá deambulava era passado quase sem tocar em nada. A não ser nas plantas, mas para isso tinha reservado uma parte entre a cozinha e a varanda e isto em nada perturbava aquela arrumação programada. Quando arrumava, num dia previamente marcado no seu calendário mental e cuja mudança por um ou outro motivo lhe causava algum mal estar, irritação e até surpresa pois nunca se imaginava nesse dia num outro local a não ser em casa, deixava tudo de tal forma irrepreensível, que demorava muito tempo a sujar-se de maneira a ter de estipular outro dia na sua memória. Ficava assim liberto e sentia dessa forma ter cumprido um dever de grande importância, tanto que achava merecer uma recompensa e aí sim, saia para apreciar o que se passava lá fora. Embora achasse que o que lhe interessava, tudo o que o podia fazer feliz estava entre os elementos que compunham aquela arrumação e que interagiam com toda a harmonia, não conseguia deixar de sentir um fascínio por esse mundo de caos que começava para lá da janela.

Ao entrar, coordenava estes movimentos com o abrir do correio que tinha apanhado na porta da entrada na respectiva caixa de correio. Nunca esperava nada de extraordinário e quando lhe surgia algo de inesperado como uma carta de quando em quando de um parente muito afastado, ou uma promoção nova com publicidade cheia de cores e letras apelativas, notava um pequeno desagrado por sentir que havia alguém que não atribuía ao seu momento de refeição a importância de que ele estava certo, esse momento possuir. E quando finalmente todas estas amarras triviais haviam sido rompidas pela força da fome, descansava-a no prato de iscas com arroz de tomate, que preferia malandrinho, mas de que, por hábito inquebrável de preparar o almoço por volta das sete da manhã, via-se obrigado a abdicar. Fazia aquela refeição com todo o método exigido a uma última ceia: sempre o mesmo prato, primeiro o arroz já seco, mas ainda com a temperatura certa para uma fome que se recusava a esperar, e depois as iscas libidinosas no seu molho de cebolada, molho esse cujo brilho o enfermeiro espalhava gulosamente sobre o arroz, para o imaginar malandro tal como gostava e como de facto lhe sabia; o copo de vinho, em quantidade parca para uma refeição que durava sempre cerca de 30 minutos. E depois era a deliciosa repetição dos gestos: o desembrulhar do jornal sem o rasgar, o pousar do prato perto do tacho, em cima da boca do fogão, o servir-se com a grande colher – como se se tratasse de um instrumento maçónico – os dois passinhos que o separavam da mesa e que dava como numa dança, o puxar do banco com o pé, enquanto o resto do corpo se preparava para se sentar naquela superfície ainda em movimento, os dois talheres na mão esquerda, juntamente com o prato, o copo na mão direita e tudo junto ao mesmo tempo a assentar arraiais na toalha branca como uma grande festa de aldeia com duração indefinida."
(in, O Simétrico, cap. IV)

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