quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Quatro quartas com contos*


"Há milagres de Natal que se operam a partir da porta. Não necessitam de se imiscuir na intimidade de Lázaros, Madalenas e Zaqueus para levantarem o moribundo, para perdoarem a pecadora ou para reabilitarem o avaro. Não olhem para mim, eu também não acreditava. Para mim os natais eram, mais do que as prendas, lugares onde não queria estar por ter descoberto há algum tempo aquilo que me fazia feliz. E como uma criança que entra pela primeira vez na sala com o consentimento dos pais para partilhar o serão com os mais velhos julga nada mais na vida possuir tanta importância quanto esse momento, também eu olvidei toda a minha existência anterior ao momento em que me senti realmente feliz. Mas esse Natal foi, por razões que não carecem de redacção, passado na cama 16 do Serviço de Psiquiatria do hospital. Com entrada assinalada nos autos no dia 24 de Novembro e saída posterior à fatídica noite que aqui tenciono contar caso a extensão da introdução não me desvie da intenção. E da acção.

Pois lá estava eu na minha cama: oito camas de um lado da divisória, oito do outro, quatro cabeceiras de encontro à parede, quatro cabeceiras frente a estas quatro, um corredor de passagem e o número acima de cada cabeceira, do lado direito. Quer dizer, do lado direito para quem entrava porque para quem estava deitado encontrava-se ao alcance da mão esquerda. Como dizia, passei a noite de Natal no 16, mais um lugar onde não gostava de estar, embora nessa altura eu ainda não soubesse onde gostava de estar. O 16 não me parecia mau número, mas como não era um ser desprovido de discernimento pensei que o número da porta de casa – estando ela vazia ou cheia – era muito mais convidativo. Por não me ser permitido levantar, ouvi o “Natal dos Hospitais” através das paredes, lá longe e jurava reconhecer algumas vozes de gente mais ou menos famosa, cuja fama aumentava para mim por não estar vinculada ao número de uma cama de hospital. E enquanto estava nestes preparos chegou o Sr. Padre, capelão da instituição, religião ao domicílio a soldo da Segurança Social. Não passou da porta porque, desconfiei na altura, não devia estar vacinado contra as doenças que por ali pairavam e para as quais também não havia panaceia. Fez então da soleira o sinal da cruz, desejou um Feliz Natal, as melhoras aos presentes e que se ia, que lhe perdoassem. Como se não fosse ele o clérigo!

Ora embora se pense que tal benzedura não podia ter efeito por não respeitar a distância mínima a ter entre o doente e o representante do Senhor em situações do mesmo calibre, a verdade é que nessa noite de 24 de Dezembro para 25 – eu já levava um mês ali dentro -, nasceu lá o Menino. Já passava da hora de uma pessoa ter a luz acesa para não incomodar os outros, que jamais seriam incomodados dada a forte dose medicamentosa de que todos gozavam ao jantar, quando a luz do meu lado foi acesa. Amparada por duas enfermeiras estava a entrar na camarata uma mulher de cerca de 40 anos, gasta, a ruminar a própria língua e completamente nua. O cenário não era bonito, até porque estava frio e só eu a vi pois todos os outros dormiam sonoramente, se é que me faço entender. As senhoras de bata branca indicaram-lhe a cama, deram-lhe cobertores e um pacote de individual de cinco bolachas. Disseram-lhe que no outro dia traziam a roupa. Ela andou por ali a pé, mesmo depois da luz se apagar nas costas da última enfermeira. Eu sentia-a. E percebi que a escassez de empenho do senhor padre naquela causa e o seu empenho na missa do Galo dessa noite, tinham colocado as coisas do mundo na sua ordem certa: o Menino em Belém tinha um burro, uma vaca e uns lençóis; a senhora nua tinha uns lençóis e um radiador. E um número, mas isso não a aquecia."
(in, Margem para Dúvidas)
*A relembrar o bolo da nossa infância Quatro quartos com laranja

1 comentário:

Anónimo disse...

bonito