quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Quatro quartas com contos

As noites de Natal têm na sua coutada dois poderes: o poder cicatrizador de colocar sobre o passado um véu ou mesmo uma borracha e tornar inexistente o sempre lá esteve, e o poder de apartar para sempre duas metades em conflito. Poderes diferentes portanto, mas que se tocam de uma forma quase histérica, pois as noites natalícias ou colocam nos píncaros as almas, ou por um sopro, uma mudança na décima de tom com que se pronuncia um “não” ou um “sim”, as desamparam.
Várias almas se reuniam à mesa deles. Há muitos anos que o Natal era uma oscilação entre esses dois estados referidos no parágrafo anterior, e a situação repetia-se na Passagem de Ano, quando a proliferação de alternativas, um rendimento insuficiente, comodismo e o álcool não permitiam o festejo em outras paragens que não à volta daquela mesa. Se ela bebesse na noite de Natal teriam, os que partilhavam a mesa, de tactear a noite e perscrutar se nela havia a benignidade anunciada compulsivamente durante o mês adventício. Se ela não bebesse, todos se comportavam como se o próprio Menino Salvador tivesse operado um milagre antes mesmo de nascer, o que até podia acontecer pois ele tinha o dom da ubiquidade que como sabemos tem efeitos retroactivos.

Essa noite de Natal seria decisiva para todos principalmente para ela e para o filho que, num episódio ao qual teremos de recuar, apanhou-se numa situação sem retorno. Numa tarde do fim do mês de Novembro o filho chegou a casa esbaforido: tinha passado à saída da escola pelo trabalho dela e ela não estava lá. Correu para casa, pediu ao Salvador para ela não ter bebido, que quando o fazia sem assistência podia bater com a cabeça em qualquer sítio e desmaiar, esvair-se em sangue e morrer. Ou esquecer-se de esconder as garrafas vazias. E morrer. Mas não, e Deus até nem podia intervir porque tinha coisas mais importantes. Ele lá ia adorando Deus com ressentimentos moderados. Quando chegou ela estava viva, graças a Deus, mas não muito bem. Parecia-lhe a ele que ela tinha bebido mais do que o normal, mas isso talvez fosse um defeito de filho pois como sabemos filhos e pais têm tendência para o exagero no que diz respeito às coisas uns dos outros. Porém, não era. No ar elevava-se o cheiro a um respiro ébrio e a fezes. Ela tinha defecado no sofá da sala e olhava-o como quem pedia perdão, não se sabe se pelo incómodo de ter de limpar os sofás, se pela vergonha de ele ter de lhe dar banho a ela que era mãe e uma mulher feita, se pela desilusão repetida durante anos, desde que ele se lembrava de espreitá-la nas traseiras a beber e ia esconder-lhe os comprimidos para a prisão de ventre no estrado da cama por achar que neles residia o seu mau estar dia sim, dia não. Porque a mãe não bebia de uma forma qualquer, tinha método: bebia dia sim dia não para aumentar o desespero dele no dia não já a adivinhar como ia ser o dia sim.

Ajudou-a a vomitar, lavou-a, deitou-a, limpou como pode o sofá, abriu as janelas, espalhou cheiros agradáveis pela sala, procurou a garrafa, foi colocá-la no vidrão, fez o jantar à moda dela para dar a entender, quando todos tivessem chegado que tinha sido ela, que pelo seu pé e pela sua mão se tinha portado como lhe era exigido. Ou pedido, não sabemos. Quando toda a gente se reuniu, viram-na um pouco combalida, mas sem perguntas ou desconfianças efectivas que valessem a pena uma discussão. No fim do jantar ele prometeu-lhe nunca mais lhe falar; que ela nunca mais ousasse falar-lhe sem uma cura.
Na noite de Natal e quase há um mês sem se falarem, o filho preparava-se para presenteá-la com uma palavra ou várias, como se lhe estivesse a dar um torrão de açúcar pelo seu comportamento. Mas a noite de Natal não se cumpriu, pelo menos naquela mesa pois no ar, para além da presença muito esbatida do Salvador, andava também o seu hálito fétido e bebido. Ela bebeu e ele nunca mais lhe falou. Ou ele nunca mais lhe falou, e ela bebeu.

(in, Margem para Dúvidas)
*A relembrar o bolo da nossa infância Quatro quartos com laranja.

Sem comentários: