Quatro quartas com contos*
O meu pai nunca entrava na cozinha. Não que achasse ser este um lugar exclusivamente feminino onde se congeminavam com argúcia as maiores traições, conspirações e tragédias da humanidade, mas porque tinha a certeza que aquele não era o seu lugar. Dizia que não sabia cozinhar, que o sítio era frio e mau para o reumático, que não convidava, “uma gruta”, nas suas palavras.
Porém, na tarde do dia 24 de Dezembro era ele quem dedicava duas a três horas a essa congeminação que dava pelo nome de rabanadas ou fatias douradas. Colocava o avental pendurado no pescoço – a minha mãe ia por trás, cruzava-lhe os atilhos nas costas e abraçava-o pela cintura com a desculpa que ao dar o laço à frente, acima da barriga dele, as fatias douradas sabiam melhor – e pedia a alguém que lhe arregaçasse as mangas. Começava por cortar o cacete de pão de há dois dias em fatias enviesadas por achar que assim a superfície aproveitável – leia-se “entre côdeas ou sem elas” – seria maior. Esse devia ser um dos segredos para uma espécie de prece individual que se instalava entre nós enquanto comíamos as rabanadas. Depois molhava as fatias de pão no leite morno – “nunca quente”, dizia ele, “ou as fatias ficam demasiado moles e não entram na próxima molha que é a de gemas” – com uma precisão de movimentos dignos de menção. As pontas dos dedos seguravam a côdea mas não apertavam a fatia; pegavam nela como pegariam numa fotografia, sem tocar na superfície alva do miolo. Depois mergulhava a fatia num prato fundo coberto com o leite e esperava cinco segundos: um, dois, três, quatro, cinco. Eu sabia porque contava-os e eram sempre os mesmos cinco. Ao quarto segundo o leite borbulhava e ao quinto a fatia emergia do líquido, com os dedos na mesma posição mas mais apertada deixando cair em pingos grossos para o prato o leite em excesso, num ping de tecla de piano, numa espécie de ricochete. Com a mão direita a segurar a fatia, puxava com a esquerda o prato onde estavam as gemas que ele próprio batia sem falar com ninguém com se na realidade não estivesse a bater gemas, mas a bater em alguém e como o dia era quase sacro, não valeria a pena trazer as amarguras de um ano – desde o último Natal – para toda a confecção de tal iguaria. Com as gemas, o meu pai não mergulhava as fatias e note-se aqui a importância do verbo: deitava as fatias na papa laranja, isto porque para além do volume ocupado pelas gemas batidas ser menor que o ocupado pelo leite, as fatias, ainda na condição de fotografias mostradas a um menino de 5 anos, com os dedos a servir de moldura para não estragar, eram lambuzadas nas gemas. O meu pai deitava uma face, depois – e aí sim – com o polegar, o indicador e o médio, volteava rapidamente a fatia para esta tomar cor do outro lado e levantava-a das gemas rapidamente. Ao princípio fingi que não vi, pensei que não vi, mas de facto e por breves momentos em todo o processo, o meu pai tocava com os dedos no miolo do pão. A minha descoberta foi trágica. Não para a vida obviamente, mas para a descrição do processo, do método com que ele fazia as rabanadas. É que eu podia jurar que ele nunca colocava as mãos lá e nesse fragmento de tempo é que residia a beleza das três horas na cozinha.
Não era importante como é que ele fritava as rabanadas, como espadelava no ar os instrumentos de cozinha, como tudo aquilo se assemelhava a uma encenação, como os gestos largos pareciam a mesmo tempo os mais teatrais e os mais sinceros. Importante mesmo era ver como no fim, ele sussurrava a canela entre os dedos e pulverizava todas as fatias num beijo superficial.
Bom Natal
(in, Margem para Dúvidas)
*A relembrar o bolo da nossa infância Quatro quartos com laranja
2 comentários:
Feliz Natal, Beluga
hum....que delícias! as rabanadas e o conto (?).
Um feliz Natal.
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