quarta-feira, 3 de janeiro de 2007

Do casamento, “Do Amor e outros demónios”*

Nota em jeito de prólogo: Não consigo postar mais imagens. Não tenho nada contra o casamento. Também não tenho a favor. Às vezes desejo que o amor não seja assim tão bom, para eu não ter de admitir que nunca experimentei. O casamento pode acontecer sem amor e o amor pode acontecer sem casamento. Há duas alturas da vida em que vamos a casamentos, fora o nosso, se formos e que faz três: por volta dos 20-30 anos quando os nossos amigos casam ou os nossos pais casam pela segunda vez e por volta dos 40 quando os nossos amigos casam segunda vez, às vezes com a mesma pessoa com que casaram na primeira. Um dia entrei num café e uma mulher olhou para mim, olhou para o copo de água que tinha à sua frente e disse que eu ia casar em 2007. Como a água era Fastio, achei que ela estava enganada porque me pareceu muito mais credível tal vaticínio vindo da água a jorrar da torneira, por causa da teoria do caos, do que da água engarrafada.
Já desfeito o mito de que a Idade Média era a idade das trevas, bem como desfeita a ideia de que os homens do Renascimento eram verdadeiros príncipes das artes, podemos dizer que tanto uma época como a outra nos deram exemplos de vida em sociedade que ainda hoje deviam ser seguidos. Na Idade Média (designação que define o período entre a queda do Império Romano (século V) até à queda de Constantinopla (1453)), os casamentos eram muito mais civilizados do que aquilo que nos fazem crer. Da mesma forma, a teoria que atribui aos mecenas do Renascimento o bom gosto cai por terra quando nos é dado a conhecer que o pintor com mais encomendas na altura era… Pinturicchio. É verdade!

Na Roma Antiga o casamento era um acto privado: não havia obrigatoriedade de apresentação perante nenhuma entidade religiosa nem arauto do poder, não era um acto escrito, não se negociava nada a não ser o dote. O casamento era acima de tudo um dever do cidadão, para procriar. Isto explica-se pois o cidadão fazia parte da República tinha de contribuir para a mesma. Quando a República dá lugar ao Império, o dever do bom cidadão era casar apenas com o intuito de procriar. Há diferenças: no primeiro caso a mulher era o instrumento dessa moral (tanto que em casos de divórcio por a mulher repudiar o homem ou por ele ser repudiada, era ela quem tinha de abandonar a casa); no segundo caso ela torna-se companheira, cúmplice.

O casamento dos Arnolfini que nunca nos mereceu grande atenção – passamos por ele, reparamos no espelho, na janela aberta, na perspectiva e pouco mais – mostra-nos um casamento dentro de casa. No século XV não era necessário nem um padre nem testemunhas para se realizar um casamento cristão e legal. Um casamento podia ser feito em qualquer lado, mesmo em casa, desde que estivessem presentes as duas pessoas que podiam realizá-lo: o noivo e a noiva. Somente após o Concílio de Trento (1545-1563)) que tudo legislou, a Igreja acordou a necessidade da presença de um padre e duas testemunhas para consolidar a cerimónia. Isto aconteceu não por motivos religiosos, mas para evitar os abusos, a promiscuidade. Mesmo assim não era necessário à realização da cerimónia o interior de uma igreja ou a frente de um altar. Podia ser mesmo à porta de um edifício religioso. A pintura de Van Eyck também nos mostra uma noiva vestida de verde, azul e véu branco, pois a tradição das noivas vestirem branco é recente, vindo apenas do século XIX. Desenganem-se se pensam que a senhora Arnolfini estava grávida: o facto de estar com um ventre tão proeminente, é apenas um retrato de época, da beleza feminina do século XV. As mulheres bonitas colocavam os dedos em pinça, tinham a testa calva, tez branca e ventre saliente, na continuidade das gravidis.

No século XVIII o casamento era uma instituição desacreditada. Veja-se este quadro de Hogarth, o quarto de uma série de seis. Existem elementos em número suficiente para colocar em causa o casamento, pelo menos o da época. Os problemas eram os mesmos de hoje: a fidelidade (ou falta dela), a promiscuidade, a falta de maturidade dos noivos, o casamento como coisa contratual em que não valia a pena investir nos sentimentos uma vez que o investimento era feito com propriedades, títulos e dotes. Comecemos pela criança no chão – uma criança negra provavelmente filho de um escravo – que brinca com um boneco que é Ácteon**. Mesmo que desconheçamos a história de Ácteon, não deixamos de notar a ramificação que brota da sua cabeça (curiosa esta analogia com os cornos e a traição. Segundo sei, os touros que tinham cornos maiores eram os melhores na luta com outros touros. Os donos dos mais fracos ficaram enciumados e começaram a chamar “cornudos” aos que o eram. E assim o que era um elogio passou a praga de que qualquer um se quer livrar). O homem que está sentado na poltrona vermelha tem um livro que se intitula: “Le Sopha”, um romance escrito por Crébillon, o jovem, e cujo conteúdo vem na continuidade das “Mil e Uma Noites”. A languidez das personagens do quadro combina com a languidez do sultão que escuta Xerazade. A mesma personagem da poltrona aponta para um biombo onde está retratado um baile de época, mas com os convivas mascarados. Essas festas eram na realidade momentos de total devassidão, de catarse, em que tudo era permitido (Uma espécie de Eyes Wide Shut).

No início do século XX o casamento civil e religioso podiam ser celebrados no mesmo dia. Tem por essa altura início as grandes festas de casamento, primeiro para cerimónias civis e depois, incluídas no pacote da cerimónia, em celebrações religiosas. Isto deveu-se à influência de casamentos entre pessoas de diferentes religiões e culturas, que na impossibilidade de conciliarem numa única cerimónia o melhor das suas culturas, compensavam-se com uma grande festa de casamento.

Hoje o casamento é um pouco das duas versões: é legalização, mas também convenção. Dispensável referir que existe um negócio de casamentos. O problema é que as pessoas se centram em demasia no dia do casamento e menos no casamento propriamente dito. Desdobram-se em mil para entregar convites pirosos com corações entrelaçados a todos os amigos (solução: convites cantados ou convites entregues por pombo correio), as senhoras perdem tempo e dinheiro a escolher vestidos (solução: escolher verde-água que sempre dá para a entrega dos prémios dos mais ilustres lá da terra), os senhores enfadam-se entre a saída da igreja e a mesa de queijos (solução: nada de gravatas nem obrigatoriedade de dar esses passos), as pessoas morrem de fome por causa das 45 566 fotografias que teimam em tirar (solução: máquinas fotografias descartáveis por cada casal), a falta de gosto no nome das mesas (solução: tirar à sorte, ou fazer um casamento piquenique com a toalha do rissol, a toalha do bolinho de bacalhau), a precariedade de tudo aquilo.
Se for leitora e pensar num casamento menos ocidental, recordo-lhe um provérbio árabe: "bate todos os dias na tua mulher. Mesmo que não saibas porquê, ela saberá".

*De “Do Amor e outros demónios de Gabriel Garcia Marquez.
**Ácteon viu Diana, a deusa da caça nua a tomar banho. Como castigo, a deusa transformou-o num veado para que este nada pudesse contar do que viu. Em seguida chamou os seus cães que devoraram Ácteon.

3 comentários:

AM disse...

bravo! beluga :)

AM disse...

E mais esta (lembrei-me mais tarde)

The truth is they're happier when they're in pain. In fact, that's why they got married.

Endless cycle, New York, Lou Reed

Belogue disse...

Isso vai de encontro ao que penso. As pessoas ficam juntas porque naquele momento, perante aquelas condições aquela pessoa era a que "melhor me servia". Entretanto, leva-se tudo à frente.

Obrigado