quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007


(Cervantes, Defoe e Verne)
Eis o segundo, de um conjunto de não sei quantos posts acerca da semelhança entre personagens da nossa literatura. Reconheço, caso isso me imputem, a limitação das mesmas à ficção e ao romance, mas temo ser essa a minha fraqueza ao que à leitura diz respeito: um livro de cada vez, nunca deixar uma leitura a meio, preferência para as biografias, os romances e a História, em detrimento do livro técnico , seja lá o que isso for.

Esta semana quem sobe à cena, ou se preferirem, quem tem a dedicatória na página em branco que antecede a história, são os empregados. Isso mesmo, os empregados das grandes personagens que quase passam despercebidos mas que são em grande parte responsáveis pelo sucesso do mestre – invariavelmente personagem principal de mérito comprovado ou não – ou pelo sucesso de toda a história. Heróis ou vilões anónimos a quem carinhosamente nos referimos pela expressão paradigmática e tumular: “a culpa foi do mordomo”. Os empregados deste post não são os culpados de nenhum crime, mas sem eles os diversos crimes não seriam chamados de tal, pois cabe-lhes a tarefa de servir os mestres e enfatizar a acção. Começamos então por Sancho Pança que é de imediato associado ao Dom Quixote – ou será este último ao primeiro? Estamos perante um par que apenas a literatura, (e onde mais o acaso é tão legítimo quanto o previsível?) poderia ter juntado. Dom Quixote é o velho senil que apenas na sombra tem uma representação daquilo que é. Quando a luz do dia bate nas figuras a uma determinada hora elas ficam despojadas da sua loucura, da sua gordura e da sua pobreza e tudo o que é insanidade adquire, durante os dois minutos em que a sombra se projecta no chão, a nobreza, a solenidade, rectidão e a elegância. Sancho é, em contraponto ao seu amo, o realista que com a sua saloiice, consegue equilibrar a loucura do mestre. Quando D. Quixote vê gigantes em vez de moinhos de vento, a sua hesitação, se alguma existe, é colmatada pela visão contrária de Sancho: nos gigantes vê moinhos de vento. Ele é a ligação de D. Quixote ao mundo a que apenas vai pertencer no único momento de lucidez já no crepúsculo da sua vida. Directamente, D. Quixote inspirou um romance de Henry Fielding, Joseph Andrews, que ficando a dever tudo ao seu mentor, situa também a acção em Espanha, na personagem que dá o nome ao livro e que se faz acompanhar de um criado.

Recordamos agora Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. Daniel Defoe foi provavelmente um dos primeiros bloggers, isto porque era jornalista (hoje me dia, uma condição sine qua non para ser supracitado nos Edit Me e disputar números de visitantes) e o jornal por ele fundado (The Review) publicava, para além de notícias, pasme-se; comentários! A acção que conhecemos de Robinson Crusoe centra-se no naufrágio e consequente aprendizagem e adaptação a um novo mundo constituído por ausências: de bens materiais e pessoas. Ele instrumentaliza as ausências e contorna-as, tentando domesticar outra natureza, da mesma forma que domesticava a que já conhecia. (Thomas Hobbes, Leviatã e a relação entre a domesticação civil por parte do Estado, e a Guerra). Crusoe, tal como Philleas Fogg, cruza-se com portugueses, embora o primeiro tenha ficado com melhor impressão acerca dos lusitanos que o inglês. Mas se Crusoe, por caminhos meritórios e quase edénicos conseguiu conquistar os bens materiais necessários, a ausência de um outro igual a si só foi preenchida com o aparecimento de Sexta-Feira. Nota-se na obra uma tendência para o estudo antropológico com uma certa propensão para a superlativação do homem branco e do seu poder mental sobre o homem pré colonizado. E pré evangelizado. Sexta-Feira é salvo de se tornar alimento de antropófagos e Crusoe encontra no seu servente, a redenção.

Não podia terminar sem deixar aqui um último empregado que me é particularmente caro por ser uma leitura ainda a arrefecer no parapeito da janela: Passepartout. Se hoje em dia é tido por muitos que tudo está inventado, que já nada pode ser agradavelmente surpreendente e ao mesmo tempo, totalmente virgem, podemos dizer que essa máxima se aplica inadvertidamente desde tempos imemoriais. É de desconfiar que Júlio Verne se tenha limitado a ler os clássicos e reinventá-los. Se o fez, fez com o melhor dos dois, sendo que estes não são os únicos livros de aventuras ou romance em que o mordomo/empregado/aio/companheiro de condição social inferior desempenha o papel de personagem secundária. Júlio Verne dá ao empregado de Philleas Fogg um nome enigmático, tal como o era Sancho Pança: são ambas denominações que parecem revelar a boçalidade de quem os porta, mas que ocultam acções que os ultrapassam enquanto delimitadores das mesmas. Passepartout que já fez um pouco de tudo antes de chegar ao seu mestre, não é o chamado “vira-casacas”. O nome poderia levar-nos a pensar isso, mas o fiel servidor emprega todas as suas forças de forma a granjear favores que enobreçam a missão do seu mestre.

Para a semana, se ler qualquer coisa digna de referência, teremos outro post sobre personagens literárias e correspondências entre elas. Se não ler, “a culpa foi do mordomo”.

Sem comentários: