quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Começa aqui uma de pelo menos duas partes de um post dedicado à semelhança entre personagens literárias.

Sei que não é a primeira vez que falo de Goethe e da sua obra maior, “Fausto”. Ambos surpreendem cada vez mais e por razões sempre diferentes. Goethe, cujo QI elevado é um facto amplamente comentado, era mesmo assim um homem que se pelava por ser bem recebido e aceite na alta sociedade. Não estamos a falar da aristocracia, mas sim da burguesia, das suas festas e intrigas internas. Goethe, que escreveu “Fausto”, homem sensível, (conta-se que chorava frequentemente e sem razão aparente) era, se assim quisermos chamar, um deslumbrado. “Fausto” é no entanto uma obra de cristalização, uma vez que o autor consegue, desde a Bíblia (que começa com a Criação do Mundo e termina no Apocalipse) e da "Divina Comédia" de Dante, condensar o divino, o terreno e o terrífico no espaço mental de uma personagem. Fausto passa por tentações que apenas algumas personagens que o antecederam conheceram o sabor. Entre essas, o próprio Cristo.
Mais tarde, quando Thomas Mann recuperou o mito de “Fausto” fê-lo num dos períodos mais negros da história: no rescaldo da Segunda Guerra Mundial e do mal absoluto que foi o nazismo. Tal como Adão que é tentado e cede à tentação, também o mundo, ou parte dele, cedeu à tentação megalómana e perigosamente coerente do ditador. Thomas Mann apresenta Fausto como homem profundamente perturbado que de facto se vende, sem direito a redenção, ao diabo. Utiliza como meio a música, fazendo assim a ligação entre o antigo paradigma faustiano e o novo: no antigo, o homem era corrompido por algo que o libertasse da modorra em que vivia, no seu aborrecimento constante; no novo, o homem é corrompido pelo desejo de adquirir conhecimento. Esta noção de conhecimento e perdição também está presente em outra obra de Mann “Os Buddenbrooks” em que a personagem que sobrevive à tragédia familiar e que deveria prosseguir com o nome da mesma, é de tal forma consumida pela paixão musical que acaba por morrer e acaba igualmente por não dar essa continuidade ao nome da família.
Outro autor, também já falado mas que segue esta linha é Proust, ou pelo menos Marcel, a personagem principal de "Em Busca do Tempo Perdido". Marcel é a personagem que à semelhança de Goethe, faz estranhas diligências para ser apresentado a pessoa A ou B. No fim, e após ter conhecido todas elas, acaba como os dois faustos anteriores: não cedendo à tentação do conhecimento, nem à tentação da excitação, mas cedendo à tentação de nada fazer, tanto que adia sine die a criação da sua grande obra onde supostamente iria condensar toda a experiência e histórias que viveu. Todos os outros esperam isso dele, mas o narrador morre sem conseguir a concretização de algo a que se propôs e que exigiam, embora não o exigissem verbalmente.
À semelhança dele, lembro aqui a personagem de Carlos da Maia, de Eça de Queirós que criado na disciplina inglesa do avô e do seu tutor, com toda a liberdade de espírito e de escolha, é a “eterna esperança adiada”. Fracassa tal como o pai, não por causa da sua educação, mas por ser um diletante incapaz de abraçar um projecto único e levá-lo até ao fim. A sua educação e os conhecimentos que tinha de nada lhe serviram perante a inevitabilidade do destino.
Não sei se em todas as personagens aqui enunciadas foi o destino quem agiu, o que me parece bastante improvável, uma vez que as mesmas mostram possuir uma notável capacidade para se sobreporem ao destino. Vendem-se porque querem contorná-lo, desafiá-lo. São fleumocráticos: cumpridores, educados, pachorrentos. E insatisfeitos, tristes, absortos. E apresento-o assim como partidários ou responsáveis por um regime de poder, com o sufixo cratos (poder), pois neles, uma vez instalada a fleuma essa insatisfação constante, a mesma jamais será ultrapassada. Eles são os únicos membros da instituição que criaram. (Como Satie era o único membro da sua igreja).

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