domingo, 20 de maio de 2007

sem título


Era o nosso último dia na eira a debulhar o milho, a ver as mãos esfarelarem-se e espigarem. Era também o prenúncio de uma estação em que o tempo era useiro e vezeiro na crueldade; ora molhando-nos até aos ossos enquanto tentávamos levar as vacas à ordenha, ora encurtando-se mais cada dia até ao dia em que acordar e adormecer aconteceriam na mesma hora. Era também a última vez que me encontraria na posse de toda a minha razão uma vez que daí a três meses, se a loucura não me levou a memória, aquele que eu hoje contemplava à minha frente, cobrindo-me com a sua altura de sombra condescendente perante o sol do meio-dia em pico, seria apenas um canteiro perto da plantação. Nessa mesma noite, uma alfaia mal guardada numa prateleira mal martelada, caiu-lhe no topo da cabeça, levou-lhe uma orelha e a vida. Ele estava a acender um cigarro enquanto fazia uma pausa para recomeçar a malhar, eu caminhava na direcção dele e se um meteoro caísse ali seria para mim mais credível a sua morte, do que ceifada pela estupidez do destino.


Três meses depois, de preto tingida voltei para a cidade para acabar os estudos que o meu pai prezava mas que agora, sem prometido, ou com ele enterrado sob os caramanchões de pouco me serviam na sociedade da época. Era necessário procurar novo prometido e certificarmo-nos que desta vez ele não cometeria a imprudência de se colocar debaixo de uma prateleira com vontade própria. Um carro de praça levou-me até à estação, o resto do percurso ficou por conta do maquinista e das minhas pernas que a cada passo para a frente davam dois para trás tal era a vontade de conhecer o noivo e recordar o preciso lugar em que a orelha daquele que eu amava parou depois do estrondo da alfaia. Eu que nunca tinha contrariado o meu pai, devido à ausência de necessidade em tal coisa e devido à minha irmã mais velha que sempre se encarregou disso, deixando-me a mim o papel de “ovelha branca” da família, não ripostei quando me foi apresentado um beato das redondezas, que fixava os olhos no terra ao ver uma rapariga passar e cujos dentes desalinhados, podres e escuros eram a única coisa que se recordava da estampa. Mas claro que aí, ainda de véu preto, não ripostei. Nem mesmo quando tivemos o primeiro filho. Nem mesmo o segundo, o terceiro e a quarta, uma rapariga que a algum custo recebeu o nome de Ceres em homenagem à deusa das colheitas.


A loucura tinha encontrado lugar desde o primeiro dia da minha vida depois da morte dele. Não que alguma vez tivesse fugido às regras: casei, bordei, cozinhei, procriei, obedeci, criei, debulhei o milho… Mas eu já não era eu. Sempre que podia, escapava-me até ao caramanchão e comia-o um bocadinho. Não ao caramanchão claro, mas ao que eu tinha amado e ao qual, por incapacidade de contrariar o meu pai, nunca tinha beijado. Um dia ele acabou-se-me e eu que também já tinha os miúdos criados e as mãos muito gastas de tanto milho debulhar, deixei-me levar.

1 comentário:

AM disse...

nham, nham, nice and tasty :)