domingo, 23 de setembro de 2007

AS PALAVRAS DOS OUTROS - II

A ressurreição dos bobos

1. Não, leitor, não a ressurreição dos palhaços ridículos que julgam trazer o mundo na barriga (desses, temos muitos enchem o carnaval social). Queremos o daqueles que Irene Lisboa definiu "consciência elementar e acessória", num dos livros admiráveis e esquecidos: "Apontamentos". Exactamente, os bobos de quem "um senhor lançava de vez em quando mão", para que denunciassem os reis nus, os sapos inchados. E, olhando a sociedade onde a hipocrisia grassava (1943), dizia: "parece bem que o mister do bobo devia ser ressuscitado. Com as suas duas funções e não uma só... Gente que divirta a outra há muita. De que se carece é das tais consciências elementares, consentidas". Precisamos de ressuscitar o histrião que saltitava nas cortes de antigamente a exercer o ofício da "consciência elementar". Nos nossos dias abundam os farsistas. Abarrotamos de "notáveis", inconscientes da própria figura grotesca e a fazerem-nos rir (riso amarelo) e chorar de raiva. Na tolice, vão dando cabo do país. E (porque nos sugam e afligem) clamamos: renasçam os da espada de fogo!

2. Os burlões mascarados andam por todo o lado. Hoje, por muitos mais lados do que em 1943. Então, matavam-se e esfolavam-se, gritavam aos microfones, sujavam as primeiras páginas de jornais, desfilavam, pançudos ou de bigodinho ou a arrastar o cinismo fininho, as botas do ex-seminarista tirano, em terras de humilhados. Agora, os palcos multiplicaram-se é a época do showbiz. Do mega-circo. Sim, ao pé disto, a Vanity Fair, de Thackeray, não é nada - sendo o mesmo: um desfile de ambiçõezinhas desavergonhadas. Agitam-se em palácios, assembleias, televisões, rádio, jornais - e arrancam aplausos aos que se alimentam da farsa e já tudo aceitam e com tudo gozam, desmiolados. Chuparam-lhes a massa cinzenta pela palhinha da comédia demagógica, da propaganda, diria José Gomes Ferreira.

3. Às vezes, porém, o público agita-se. E o mestre de baile logo tenta acalmá-lo "Não te excites, não estragues a festa." O público resmunga, pergunta: "Será verdade?" Mete-o o agente na ordem: "Aqui, não há verdades nem meias verdades! Se pias, lixas-te! Se queres safar-te, imita!" E o público imita. De facto, não existe outra Cultura. A massificação da imbecilidade impôs-se. Triunfou. Poderá ela triunfar da fome? Da fome de espírito e de justiça? Espero que não. Acredito na força do espírito, da Cultura e da consciência cívica. Acontece abrirem-se olhos - e os títeres tramarem-se.
in: jornal de notícias de 23.9.2007 (link)

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