sexta-feira, 19 de outubro de 2007

25 ANOS DEPOIS - III
No Reino dos Falsos Avestruzes
João Martins Pereira

Os cães de caça (ou os vendedores de mitos)
Quanto a António José Saraiva, que muitos ainda identificavam com o impiedoso libertário do “Maio e a crise da civilização burguesa”, o que os textos de 74-75 não chegavam para desmentir, começa, por voltas de 78 a surgir com artigos de inesperado “realismo” e “sensatez” política, a propósito disto ou daquilo. Em resumo, ia paulatinamente germinando a “intelectualidade de direita” que hoje conhecemos, “consciência infeliz” de uma AD que não correspondeu às suas esperanças.
Com a óbvia excepção de Júdice, que veio, esse, da extrema-direita juvenil (com Lucas Pires, aliás), quase toda esta gente enferma de um talvez incurável “complexo de esquerda”, particularmente evidente num Alçada e num Pulido, menor num Lucena, muito ténue num Saraiva, cuja maior segurança lhe advém de um estatuto intelectual que nenhum dos outros alguma vez conheceu (ou conhecerá) e de um empenhamento muito mais “cultural” do que directamente político. Alçada ainda não digeriu o passo em falso do seu livro sobre Marcelo Caetano, e faz constantemente questão de lembrar o seu passado e os seus amigos de esquerda, por esse mundo. É também patente a “desculpabilização” que lhe provoca a readquirida “sensatez” de velhos militantes de esquerda (ver adiante, a propósito de V.P. Valente, o mito da “boa esquerda de antanho”).Reconforta-se com o facto de Jorge Amado se declarar disposto a apertar a mão ao presidente Figueiredo (“estas declarações de Jorge Amado constituem, mesmo fora da política brasileira, um conforto e uma liçao”), com a conversão à “lucidez” do ex-guerrilheiro brasileiro Fernando Gabeira (“quando era militante de esquerda não andava a discutir o Marx pelas universidades: raptou antes o embaixador dos E. Unidos no Brasil e trocou-o pelos seus companheiros que estavam na prisão” – esta citação é um típico exemplo do “complexo de intelectual”, a que viemos a dedicar algumas considerações). Saúda em Jorge Semprun “ o testemunho dos intelectuais que “se enganaram” e penitencia-se da “ditadura intelectual de esquerda” em que medrou a sua geração (!) e a que deu o seu próprio contributo. A torto e a direito se reclama das suas amizades francesas (Domenach, “son ami” E.Morin), como o fez num penoso diálogo televisivo com uma pobre criancinha, que estava ali para falar e não apenas para o ouvir...
Suspeito que, em contrapartida, não o iremos ouvir falar muito da sua eleição, deliciosamente irónica, para a Academia Brasileira de Letras, onde foi ocupar o lugar de...Marcelo Caetano (pobre compensação para quem já desejou ser Embaixador em Brasília). Tudo se passa como se Alçada nos dissesse: como posso eu ser de direita, se só tenho amigos de esquerda? O que só vem a provar que, ele próprio, tem consciência que é de direita. A Televisão também a tem (e não costuma enganar-se), que tentou dar-lhe o papel de Nemésio, o brilhante e descontraido conversador que o fúnebre e angustiado Alçada nunca podia ser – e não foi – e que o convida sempre que pode para pequenas “rábulas intelectuais”. Pois até foi ele o entrevistado no Telejornal no dia da morte de Sartre, com quem nunca nada teve que ver, ele-discipulo-de-Mounier ( de quem hoje se reclama, mal diga-se, o CDS) ao tempo das grandes obras sartrianas!
In: joão martins pereira – no reino dos falsos avestruzes – editora “a regra do jogo” - 1983

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