domingo, 28 de outubro de 2007

(…)
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias
a penar!
Tu, que te dizes Homem! Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes

p'ra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias,
as Políticas, as Artes e as Leis,
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo
Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar.
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho Marítimo da índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas Terras
e que trouxeste de lá mais gente p'raqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
p'ra te chateares também por debaixo d'água,
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!
(…)
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno
Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios
Ó cofre d'indigentes
Cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal!
Ó Catitismo das lindezas d'estalo!
Ahi! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Ai! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d'impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Ahi! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Ahi! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competência de relógio d'oiro
e correntes com suores do Brasil,
e berloques de cornos de búfalo!
(…)
Ó tédio do domingo com botas novas
e música n'Avenida!
Ó santa Virgindade
a garantir a falta de lindeza!
Ó bilhete postal ilustrado
com aparições de beijos ao lado!
E vós ó gentes que tendes patrões,
autómatos do dono a funcionar barato!
Ó criadas novas chegadas de fora p'ra todo o serviço!
Ó costureiras mirradas,
emaranhadas na vossa dor!
Ó reles caixeiros, pederastas do balcão,
a quem o patrão exige modos lisonjeiros
e maneiras agradáveis pròs fregueses!
(…)
Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim
e se por desgraça vem um dia sem jornais,
tens de ficar em casa nos chinelos
porque nesse dia, felizmente,
não tens opinião pra levares à rua.
Mas nos outros dias lá estás a discutir.
É que a Natureza é compensadora:
quem não tem dinheiro p'ra ir ao Coliseu
deve ter cá fora razões p'ra se rir.
(…)
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas, que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás - vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro, deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
– Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!

(Almada Negreiros, "A Cena do Ódio" - excertos)

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