quarta-feira, 3 de outubro de 2007

- o carteiro -


Não sei se faz parte da biblioteca visual e até referencial dos leitores da Formiga, mas o ouroboros, a serpente que morde a própria cauda, está presente em inúmeros momentos de figuração da nossa história e arte. O ouroboros tem várias interpretações e que o diga este site . Tantas interpretações que algumas são mesmo contraditórias. No fundo acabam por querer dizer a mesma coisa: a serpente que morde a própria cauda representa a eternidade, o ciclo fértil por se aproximar das formas reprodutivas femininas (o sol era para os povos primitivos, masculino porque os seus raios fecundavam a Terra – feminino). Porém posso também tomá-lo como a forma estéril por excelência, uma vez que fechada em si mesma não permite a entrada de mais nada (tal como o Ser para Parménides). Quando esticada, a serpente representa simplesmente o mal, porque como ainda não encerrou um ciclo, não atinge um nível superior que começa com a vida e acaba com a morte, recomeçando aí mais uma vez. E quanto mais avançamos para a Alquimia, a Maçonaria, o Hermetismo, o Cristianismo, mais variadas são as interpretações. Há até a relação entre o ouroboros e as posições sexuais representando este o chamado 69.


Mas no nosso universo o ouroboros aparece aos olhos mais atentos na imagem da cidade de Coimbra, imagem essa que está relacionada com uma lenda da própria cidade.


imagem da cidade de Coimbra

Ao nível da Arte, a imagem da serpente está muito ligada à Virgem, a São João Evangelista e a São Jorge. São João Evangelista, conta uma escritura, terá morrido envenenado por uma serpente que se encontrava no cálice por onde o santo bebeu (esta é apenas uma das histórias acerca da morte do santo). São Jorge, como sabemos derrotou o dragão, uma passagem actualizada da história de David e Golias. Ao ser representado assim, com o dragão sob os seus pés, Mantegna indica-nos que o bem venceu o mal.


Andrea Mantegna

St George

1460

Gallerie dell'Accademia, Venice

Também de Mantegna é este outro quadro, o quadro de Judite cortando a cabeça de Holofernes que aparentemente nada tem em comum com qualquer história sobre o ouroboros, mas que uma segunda interpretação revela detalhes importantes: a mão de Judite que segura a cabeça do chefe militar está na mesma linha de orientação do quadro que os pés do morto. Em linha recta, temos então a cabeça e os pés, o início e o fim, o alfa e o ómega tal como na serpente que não completou o ciclo. Algo semelhante foi possível observar numa encenação de “À Espera de Godot” em que a primeira parte da peça acabava com o chapéu e as botas lado a lado no palco vazio.


Mantegna
Judith and Holofernes
1495
National Gallery of Art, Washington


No que diz respeito à Virgem, esta referência é imediata: “E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz. E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas. (Apocalipse, XII, 1-3)" . Os exemplos artísticos são muitos: Caravaggio e a Madonna dos Palafrerneiros é um retrato muito íntimo da divindade e Cristo e da Mãe. O pequeno Cristo nu é auxiliado pela mãe na tentativa de matar a serpente, como se de uma brincadeira se tratasse. Eles sabem que Cristo, como representante de Deus na Terra, tem poder para destruir o animal que representa o mal e Caravaggio mostrou-o como se fosse uma diversão entre mãe e filho, numa pintura cujo resultado é muito humano.


Caravaggio
Madonna with the Serpent
1606

Galleria Borghese, Rome

Em realação à escultura, e porque sou omissa face a isso, trouxe o exemplo de Artus II Quellinus. Nesta imagem vemos como a Virgem se mantém sobre uma Lua crescente (representação bíblica comum a Dürer e aos maçónicos, por exemplo. No caso de Dürer é retratado o mesmo episódio bíblico que relaciona a Virgem com a serpente e que já referimos em cima).


Artus II Quellinus

Virgin of the Immaculate Conception

1690

O.-L. Vrouwekathedraal, Antwerp


Durer
The Revelation of St John: 10. The Woman Clothed with the Sun and the Seven-headed Dragon

1497-98

Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe


Esta lua é carregada por dois querubins. Mãe e filho tentam afastar a serpente que envolve a base da lua, mas vemos pelo peso do filho, de Cristo, que poderia até desiquilibrar a composição, que é ele que apesar de ser ainda criança, mata a serpente e assim afasta o mal. É também uma imagem típica da imagética promovida pela Contra-Reforma, uma vez que aqui o bem (Catolicismo) vence o mal (Protestantismo).


E para quem não quer andar por aí à procura de serpentes em bases de lua, dou dois conselhos: uma pequena igreja em Macinhata do Vouga que tem uma escultura semelhante, o quadro que ontem estava atrás do cardeal patriarca de Lisboa aquando da sua intervenção filmada pelas várias televisões.

4 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
[A] disse...

Excelente!
Obrigada Beluga.

AM disse...

Por ouroboros, Beluga, quantas postas!

Belogue disse...

Muito obrigada eu, aos dois.