quarta-feira, 5 de abril de 2006

BELUGA OU A FORMIGA A QUATRO MÃOS


CÂNDIDO, VOLTAIRE, ou "os livros por detrás do livro"

O “Cândido” de Voltaire é um livro, que não sendo grande – serve na perfeição para as esperas de avião – é no entanto um grande livro. Começa logo na primeira página com uma frase lindíssima: “O barão era um dos mais poderosos senhores da Vestefália, porque o seu castelo tinha uma porta e várias janelas”. (Nesta época o controlo da produção de vidros tinha deixado de ser somente de Veneza e estava portanto alargada a outros países. Surgiram as primeiras palavras relacionadas com vidro, com brilho e transparência). [A sua odisseia é diferente da de Ulisses: ambos enfrentam provações depois da guerra, mas enquanto Ulisses espera apenas chegar a casa e recuperar o que é seu, Cândido está em constante luta consigo e com os valores que lhe foram transmitidos. Não é como o “Cavaleiro da Dinamarca”, Michael Kohlhaas de Kleist, um homem em busca de justiça, mas antes uma personagem que se vai moldando. Aproxima-se também de Simplicius Simplicissimus, a personagem pricipal do romance “O Aventureiro Simplicissimus” de Hans Von Grimmelshausen. É como o nome indica um um jovem simples que descobre a Europa através das aventuras mais disparatadas.]

Segue-se a célebre passagem por Lisboa: “Quando recuperaram forças, caminharam para Lisboa. Possuíam algum dinheiro, com o qual esperavam salvar-se da fome, depois de terem escapado à tempestade. Apenas puseram o pé na cidade, chorando a morte do seu benfeitor, sentem a terra tremer debaixo dos pés, o mar agitar-se mesmo dentro do porto e despedaça os barcos ancorados; turbilhões de chamas e cinzas cobrem as ruas e as praças públicas; as casas desmoronam-se, os tectos esboroam-se sobre os alicerces, e os destroços dispersam-se.” Ainda de Lisboa segue-se esta notícia que muito mostra do espírito irónico de Volaire e quem sabe, da sua capacidade de ser fiel ao real: “Tinham consequentemente aprisionado um biscainho, acusado de ter casado com a sua comadre, e dois portugueses que, ao comerem um frango, tinham posto de parte o toucinho. Depois do jantar vieram amarrar o doutor Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado, o outro por ter escutado com ares de aprovação.” O autor faz uma pequena aproximação e antevisão ao que mais tarde foi proposto por Proudhon: “a propriedade é roubo”; ou seja, os princípios básicos do anarquismo. Isso acontece na seguinte frase: “- Ai! – exclamava Cândido. – O bom Pangloss tinha-me muitas vezes provado que os bens terrenos pertencem a todos os homens e que cada um de nós tem igual direito a possuí-los.” A visão de Voltaire é no entanto totalmente diferente de uma outra que mais tarde iremos abordar e que contraria a ideia de muitos pensadores do século XVIII que colocavam a Península Ibérica – em especial Portugal devido ao terramoto – como locais mergulhados nas trevas. O livro onde podemos encontrar parte desta visão chama-se “Notas de uma viagem a Portugal e através de França e Espanha” de Heinrich Friedrich Link e dá-nos uma perspectiva muito bonita do nosso país no século XVIII.

Voltaire não deverá ter deixado passar em branco uma oportunidade de revelar os seus ideais Iluministas. A certa altura de “Cândido” podemos ler uma personagem (Cacambo) a comentar: “É uma coisa admirável, esse governo. O seu reino já tem trezentas léguas de diâmetro e foi dividido em trinta províncias. Os Padres são donos de tudo e o povo de nada, tudo aquilo é uma obra-prima da razão e da justiça. Quanto a mim, não sei que exista na terra coisa mais divina do que os tais Padres, que aqui fazem a guerra ao rei de Espanha e ao rei de Portugal, mas que na Europa confessam esses mesmos reis; que aqui matam os espanhóis e em Madrid os despacham para o céu: maravilho-me disso; avancemos: ireis ser o mais feliz dos homens.”

Há também uma semelhança entre Cândido e os soldados do marechal La Palice quando o ingénuo rapaz diz: “Ó Pangloss! Ó Pangloss! Que coisas espantosas me diríeis se não vos tivessem enforcado!”. É no meu entender muito parecido com a canção que os referidos soldados compuseram em honra do seu marechal: “Um quarto de hora antes da sua morte, ele ainda vivia”.

Tal como Gulliver que viaja por terras com costumes diferentes, Cândido percorre a Europa e provavelmente a América (o Eldorado, mostrado aqui como terra de prosperidade e utopia) tomando contacto com outras culturas. Numa das suas paragens é retratada a forma como ele e o seu companheiro foram tratados, numa passagem que se assemelha ao que John Swift escreveu quando Gulliver encontrou o país dos Liliputianos: “Quando acordaram sentiram que não se podiam mexer. A razão consistia em que, durante a noite, os Orelhões, habitantes do país, a quem as raparigas tinham ido denunciá-los, os haviam amarrado com cordas de casca de árvore. Viram-se rodeados por cerca de cinquenta Orelhões inteiramente nus, armados de flechas, de maças e de machados de pedra; uns aqueciam um grande caldeirão, outros preparavam espetos, e outros gritavam (…)”.

Referências ao potache, cerimónia em que dois chefes de reinos diferentes mostravam a sua riqueza exactamente pela abdicação dela. Despojavam-se de tudo o que era bem material pois consideravam mais rico aquele que podia deixar tudo o que tinha. Em Cândido há referências a esse costume quando se diz: “(…) e apresenta-lhas humildemente, fazendo-lhe compreender por sinais que Suas Altezas Reais tinham esquecido o seu ouro e as suas pedras preciosas. O mestre da aldeia, sorrindo, tornou a deitá-las para o chão, olhou um momento para a figura de Cândido com profunda surpresa, e continuou o seu caminho. Os viajantes não se esqueceram de recolher o ouro, os rubis e as esmeraldas. ‘– Onde estamos nós?’ – exclamou Cândido. ‘– Vê-se que os filhos do rei desta nação são bem educados, porque lhes ensinam a desprezar o ouro e as pedras preciosas.’”

Há referências à mitologia, mais concretamente ao Tosão de Ouro, velo do carneiro que foi raptado por Jasão e os Argonautas. (Este episódio mitológico deu origem a várias adaptações para teatro, primeiro por Eurípedes, Séneca, Corneille e José da Silva, o Judeu. No cinema lembremo-nos de “Os encantos de Medeia” de Pasolini com a participação de Maria Callas). Esta referência pode ver-se nesta passagem: “Se permanecermos aqui, o nosso destino será igual ao dos outros homens que nos rodeiam; mas se voltarmos ao velho mundo levando, quanto mais não seja, doze carneiros carregados com pedras do Eldorado, seremos mais ricos do que todos os reis juntos (…)”.

Para finalizar, deixo aqui uma das últimas frases do livro que de certa forma resume e coloca um termo a toda a questão iluminista do livro e que era a do propósito do Homem no Mundo, bem como do seu valor: “- Trabalhemos sem filosofar – disse Martin -, porque é o único meio de tornar a vida suportável”.

Bom, talvez não seja o único, mas há falta de melhor, trabalhemos.

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