domingo, 30 de abril de 2006

“Quem meus filhos beija, minha boca adoça”


O Património Mundial, material (como um castelo ou um palácio) ou imaterial (como a língua) é matéria de muita abordagem, que de vez em quando se torna assunto de importância máxima embora sem a reflexão que seria de esperar. A sensação que hoje temos quando ouvimos as palavras Património Mundial é de que estes são vocábulos totalmente ocos e que despoletam somente discussões vãs, não por não serem necessárias mas porque a sua profundidade é nula.

Embora não me agrade escarnecer o meu país, devo dizer que entre nós encontramos sempre, e dentro desta questão, dois tipos de pessoas: aquelas que por receio de ficarem com uma opinião dentro dos cânones se antecipam com teorias ridículas, e aquelas que mesmo não tendo uma opinião espectacular acerca de nada conseguem ter o mínimo de capacidade de discernimento para perceber até que ponto a reflexão sobre o Património Mundial deve ser mais do que congressos e chegadas de chefes de Estado.

Dos primeiros, geralmente extremistas, subsiste a ideia de que o Património Mundial, e em concreto o nosso fora das nossas fronteiras físicas, está ao abandono, que os governos não se preocupam, que o público não quer saber, que não está suficientemente educado. Outras vezes, a conivência entre os principais pensadores sobre o nosso património e a opinião oficial de que tudo corre bem, é tão notória que converge para uma conversa de surdos-mudos. Os do segundo grupo levantam questões pertinentes, mas parecem não ter a força e conhecimento para se fazerem ouvir (incluo-me nesta).

1) Uma das maiores preocupações que hoje devemos ter com o património que temos e com o que deixamos é, não a razão – muito desprezada quando o assunto é Cultura – mas a força. A força que o terrorismo tem demonstrado ser detentora, tem provocado a destruição de património que não é apenas de uma nação, mas de várias, e acima de tudo, de duas culturas opostas.

2) Como país colonialista que há muito tempo teve de abandonar as suas pretensões predatórias, Portugal não pode esconder-se na capa abrangente e proteccionista da língua para acolher o património das ex-colónias como e quando lhe apraz, e empurrá-lo quando a questão é preservação. Se consideramos que esse património é de facto nosso (as roças no Brasil, as fortalezas em São Tomé e Príncipe), então temos de protegê-lo sempre e não reclamá-lo apenas quando nos apraz.

3) Quando se organizam acções de discussão e de partilha de experiências as organizações em causa têm de mostrar trabalho, soluções, e dar respostas. O IPPAR não pode continuar a furtar-se á grande questão da subcontratação de empresas para explorar as lojas dos museus, nem às dúvidas que nos levanta a posição do Douro, Património da Humanidade dentro do novo plano de fusão de institutos, nem a já antiga indignação perante a distribuição duvidosa de verbas a institutos como o IPPAR e a DGEMN cuja acção em termos de conservação de Património fica muito aquém de apenas uma parte da intervenção da FCG no mesmo campo.

4) O caminho é tudo menos fácil, mas não passa (e esta é uma certeza minha) pelas grandes acções publicitárias e sem conteúdo a que hoje assistimos. Há que escolher entre “educar” os públicos e trazê-los até ao nosso património, conseguindo ao mesmo tempo com raves que os vitrais de uma igreja não rebentem, e afastá-los dos centros históricos das cidades para que estes respirem fazendo com isto com que os mesmos centros sejam lugares mortos, pois os cidadãos são cada vez mais afastados para a periferia. São duas situações paradigmáticas do estado em que vive o nosso património: por um lado o desconhecimento do essencial que leva às grandes campanhas de publicitação, por outro, a tentativa obtusa de salvar o património que leva ao afastamento desse mesmo património, daqueles que o fazem e legitimam.

Acima de tudo, há que ter muita razão, uma razão tão cega quanto a força, para fazer com que o nosso património seja cada vez mais uma coisa viva e geradora de vivacidade em vez de ser uma mola propulsora de destruição. Se há imagem que o Património Mundial não pode ter é a de Babel – destruída pelo poder da palavra do Senhor e pela palavra dos homens previamente condenada. Que as nossas palavras não sejam vãs, nem os nossos actos aviltantes.

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