quarta-feira, 17 de maio de 2006

BELUGA OU A FORMIGA A QUATRO MÃOS

Ver as diferenças ou “os católicos dormem na forma”


Entre Rembrandt e Caravaggio não estão só os anos, mas os países e sobretudo, as religiões por estes adoptadas. Se classificarmos os dois como pintores barrocos, uma vez que ambos foram coetâneos deste período, tomando por consequência a hegemonia estilística como um fenómeno de globalização, temos artistas que embora com uma linguagem semelhante, expressam pontos de vista diferentes.

É sabido que após a Reforma proposta por Martinho Lutero na Alemanha e João Calvino na França (para já não falar no anglicanismo em Inglaterra), a Igreja Católica desenvolveu uma tática digna de selecção de futebol; jogou ao ataque tomando como máxima que o “ataque é a melhor defesa”. Assim, em vez de dar resposta e corrigir os males apontes pela Reforma Protestante, acentuou-os. O Barroco é o estilo que melhor representa a resposta da Igreja Católica, ao apresentar-se com o seu ar empolado, contra o racionalismo da época (cada vez mais viciada – a oligarquia dos Médicis em Florença). Mesmo não podendo parar a evolução (não no sentido da passagem do pior para o melhor, mas apenas no sentido de passagem), os artistas e os soberanos moldaram a arte que mais lhe aprouvesse. Assim, se hoje consideramos a Itália essencialmente renascentista e os países baixos, barrocos, temos de admitir que ambos viveram sob o signo do barroco. Em Itália – que aqui é o mesmo que dizer, "num país católico", embora também pudéssemos dizer "na Flandres ou na Antuérpia que governadas pelos Habsburgo, eram católicas" - um dos melhores exemplos de pintura barroca que temos é Caravaggio (sim, eu sei que tenho um fraquinho por Caravaggio, foge-me o dedo, o sentimento e o pensamento para o homem, que querem?!). Veja-se a forma como retrata “S. Mateus e o anjo” na obra em baixo.
Michelangelo Merisi da Caravaggio
S. Mateus e o Anjo
1602
Formerly Kaiser-Friedrich, Berlim
Já falamos disto no Belogue, mas vamos repetir que Caravaggio retratou um S. Mateus quase analfabeto, a quem o anjo pega na mão como uma professora a ensinar as primeiras letras. O evangelista é desajeitado, está perdido, tudo constitui para ele uma novidade e matéria grave. Mas a mesma temática teve tratamento diferente por parte de Rembrandt. O seu "S. Mateus e o Anjo" mostram-nos um anjo menos interventivo, que até aparece atrás do evangelista e este não olha o anjo, ou para os textos como o anterior S. Mateus de Caravaggio. Aqui S. Mateus é retratado com o olhar no infinito, como que a meditar.

Rembrandt
S. Mateus e o Anjo
1661
Musée du Louvre

Ora, sabendo a gente que é o anjo que dita o envangelho temos, no primeiro caso, um S. Mateus executor, que tenta acompanhar o ditado, mas que não o questiona, à semelhança do que acontece com a palavra de Deus para o católico comum. Já no segundo caso deparamo-nos com um S. Mateus pensante, uma vez que o evangelista com os olhos fixos parece meditar acerca do que o anjo lhe diz. Como protestante, Rembrandt passa para a pintura algumas das teorias propostas pela Reforma que sublima o papel da consciência de cada um, de cada pessoa perante a vida e perante a palavra de Deus ( a meu ver, com alguma proximidade do gnosticismo). O S. Mateus de Rembrandt é um protestante que sabe que acima da Bíblia está a Igreja, ele próprio não usa o anjo como intermediário, ele não se assume como intermediário; é o evangelista quem fala com Deus.Vemos assim como dois pintores barrocos pintam de formas diferentes o mesmo tema: Caravaggio protege-se com a capa do Catolicismo que diz que apesar do Homem nascer sem pecado original e ir adquirindo-o ao longo da vida, tem assegurada a vida eterna devido à morte de Cristo que redimiu os pecados do Mundo (Amén!!!). Rembrandt, que também se tem por homem que nasceu sem pecado original mas que o vai adquirindo ao longo da vida, sabe que só depende de si a absolvição desse pecado. É ver as diferenças senhores, é ver as diferenças.

2 comentários:

maloud disse...

Nunca tinha visto esta diferença, entre a abordagem do Caravaggio e a do Rembrant, do mesmo tema. É a nossa tragédia. Má sorte nascer-se em país católico.

AM disse...

"engraçado" como hoje em dia arrumamos os artistas nas prateleiras dos estilos, "evitando" a trabalheira de olhar e pensar as sua obras
já falei (escrevi) sobre algo semelhante a propósito, não de dois pintores, mas de dois arquitectos: Bernini e Boromini