Quatro quartas com contos*
Dona Salomé, assim chamada após a morte do seu Herodes, companheiro de 31 anos de casamento arrastava o ventre pelo fogão naquela véspera de dia de Natal. Até há duas semanas era a Salomé, ou a Mé para os da rua, desde lá de cima, da Micas do Pega, até ao Necas da Adega, ou a Dona Mé para os vindos de fora. Mas a ida do marido “para um mundo melhor” como lhe diziam tinha-lhe dado um título nunca antes alcançado e que lhe fazia crer que o Deus tirava de um lado, punha do outro, para compensar. Não era para Dona Salomé compensação alguma; o seu Herodes a subtrair-lhe à socapa filhoses da travessa, isso sim, era o Natal. Não tinham tido filhos porque ela, como se dizia na rua à boca cheia, mas nunca à visada, “era fruta tocada”. Um mau exame ginecológico, na altura em que ir a esses sítios era para gente desfrutável ou que desfrutava muito bem do dinheiro, tinha-lhe avariado o sistema e Dona Salomé vivia para o seu Herodes e no Natal, para as filhoses que ele com algo parecido com avidez, mas que não o era, ia depenicando.
Dona Mé, ou Dona Salomé, ou Mé (para nós não importa uma vez que não lhe conhecemos vida anterior ao episódio aqui narrado), estava pois de avental a dançar no corpo, (tinha emagrecido muito desde a ida do seu Herodes) de anca colada ao fogão a chorar para cima das filhoses quando lhe entrou pela casa Isabel Boaventura, vizinha dois números de porta mais à frente e que todos os anos lhe encomendava uma travessa de filhoses devido à fama que tal iguaria tinha ganho na rua e cuja propagnada se devia em parte à barriga proeminente de Herodes mal acabavam as festividades natalícias.
- Ó Mé, ainda estás nisso mulher? Vai sossegar numa cadeira! Jesus Maria José, estás cor de pimentão!
- São os vapores da fritura que me maleitam mais da minha asma.
- Então deixa lá isso, não faças mais. Essa travessa já chega.
- Está bem está! Agora que tenho a massa, mais vale fritá-la. Se puser no frigorífico vai ser para fermentar e deitar fora.
- Como queiras mulher, mas só levo estas que o doutor disse que lá em casa andamos todos com o colesterol muito alto. Doenças modernas, é o que é. Antes a gente comia tudo e só ía desta para melhor de barriga cheia e por acidente. Ai desculpa, nã devia ter dito isto. Desculpa Zita, foi um desabafo, foi uma coisa sem pensar. Deixa isso mulher, anda sentar-te aqui. Onde passas o Natal?
- Passo aqui.
- Aqui sozinha?
- Sim, como sempre passei. Só que antes tinha o meu Herodes e hoje não tenho. Depois das festividades devo ir para umas termas, para Monfortinho talvez, levar uns vapores com aquelas águas que eles têm e empapar o peito com folhas de eucalipto.
- Faz isso mulher, vai-te fazer bem. Mas hoje à noite aparece lá em casa para a gente ir juntas à Missa da Galo. Não fiques aqui.
- Vou esperar que o Herodes venha comer uma filhós.
- Ele está no Céu criatura!
- Mas lá não há filhoses!
Na noite de Natal, Dona Salomé já com o rosto lavado nas próprias lágrimas e por elas sufocada, expirou pela última vez. Depois do peito baixar completamente como num grande “ai”, não se elevou mais. Estava morta. O marido soube da notícia mais tarde, já na Missa do Galo, devido à diferença medida em anos-luz. E no momento em que ía beijar o pezinho do Salvador, que nessa noite convenientemente e por falta de candidatos para o papel à altura do mesmo voltava a ser criança, Herodes exultou: “Graças a Deus, a minha Salomé morreu!”
Dona Mé, ou Dona Salomé, ou Mé (para nós não importa uma vez que não lhe conhecemos vida anterior ao episódio aqui narrado), estava pois de avental a dançar no corpo, (tinha emagrecido muito desde a ida do seu Herodes) de anca colada ao fogão a chorar para cima das filhoses quando lhe entrou pela casa Isabel Boaventura, vizinha dois números de porta mais à frente e que todos os anos lhe encomendava uma travessa de filhoses devido à fama que tal iguaria tinha ganho na rua e cuja propagnada se devia em parte à barriga proeminente de Herodes mal acabavam as festividades natalícias.
- Ó Mé, ainda estás nisso mulher? Vai sossegar numa cadeira! Jesus Maria José, estás cor de pimentão!
- São os vapores da fritura que me maleitam mais da minha asma.
- Então deixa lá isso, não faças mais. Essa travessa já chega.
- Está bem está! Agora que tenho a massa, mais vale fritá-la. Se puser no frigorífico vai ser para fermentar e deitar fora.
- Como queiras mulher, mas só levo estas que o doutor disse que lá em casa andamos todos com o colesterol muito alto. Doenças modernas, é o que é. Antes a gente comia tudo e só ía desta para melhor de barriga cheia e por acidente. Ai desculpa, nã devia ter dito isto. Desculpa Zita, foi um desabafo, foi uma coisa sem pensar. Deixa isso mulher, anda sentar-te aqui. Onde passas o Natal?
- Passo aqui.
- Aqui sozinha?
- Sim, como sempre passei. Só que antes tinha o meu Herodes e hoje não tenho. Depois das festividades devo ir para umas termas, para Monfortinho talvez, levar uns vapores com aquelas águas que eles têm e empapar o peito com folhas de eucalipto.
- Faz isso mulher, vai-te fazer bem. Mas hoje à noite aparece lá em casa para a gente ir juntas à Missa da Galo. Não fiques aqui.
- Vou esperar que o Herodes venha comer uma filhós.
- Ele está no Céu criatura!
- Mas lá não há filhoses!
Na noite de Natal, Dona Salomé já com o rosto lavado nas próprias lágrimas e por elas sufocada, expirou pela última vez. Depois do peito baixar completamente como num grande “ai”, não se elevou mais. Estava morta. O marido soube da notícia mais tarde, já na Missa do Galo, devido à diferença medida em anos-luz. E no momento em que ía beijar o pezinho do Salvador, que nessa noite convenientemente e por falta de candidatos para o papel à altura do mesmo voltava a ser criança, Herodes exultou: “Graças a Deus, a minha Salomé morreu!”
(in, Margem para Dúvidas)
*A relembrar o bolo da nossa infância Quatro quartos com laranja
1 comentário:
directamente do aramaico? :)
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