quarta-feira, 23 de maio de 2007

“Os primeiros”, ou “as teorias que eles inventam”


O primeiro realista

O primeiro pintor representante do realismo (social) foi Caravaggio. E a escolha recai no pintor da minha preferência, não por ser da minha preferência, mas porque ninguém até ele tinha, de uma forma tão declarada, pintado os temas mais sacros da maneira mais herege. Santos com pés sujos, figuras em primeiro plano com o traseiro virado para o observador, virgens que têm a postura de prostitutas, putti em poses próximas das apetecidas por um pederasta. Na vida como na pintura – e a "pintura é cosa mentale", por isso "it’s all your imagination" ou nem por isso – Caravaggio insinuou tudo isso: foi preso, pintou os temas encomendados de forma sacrílega, privou com prostitutas e prostitutos, usufruiu da benevolência dos tempos face à indefinição da sexualidade e denunciou alguma histeria pós-tridentina que requeria observância de regras draconianas para a representação artística. Fica aqui a “Fuga para o Egipto”. Note-se neste quadro que a Virgem é ruiva (pouco habitual uma mulher ruiva ser retratada – conotação com o demo – e muito menos como Virgem), enquanto o menino é loiro. Caravaggio abre mais um bocadinho do nosso armário com esqueletos e por isso sugiro mesmo que se proponha dizer por aí à boca cheia que a ideia de Saramago para o enredo de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi retirada deste quadro.


Caravaggio
Rest on Flight to Egypt
1596-97

Galleria Doria-Pamphili, Rome

O primeiro concerto assistido
Como diria alguém que conhecemos: “concordo com a primeira parte e discordo da segunda), pois um concerto que não seja assistido é… um ensaio?! Mas Theodor Adorno ou Arnold Hauser dixit, o primeiro concerto assistido foi aquele que as sereias deram a Ulisses no barco, quando este se preparava para voltar para Ítaca. Devidamente avisado por Atena (que numa série televisiva recente era interpretada pela esfíngica Isabella Rossellini), ordenou aos seus companheiros que o amarrassem ao mastro e lhe enchessem os ouvidos de cera, pois sabia que a tentação e a magia dos seus cânticos seria superior à sua força, não hercúlea (o seu a seu dono), mas quase. Isso seria mais alguns passos atrás na sua Odisseia para o regaço de Penélope. Se bem que a possibilidade de remissão das suas culpas estaria para nós hoje totalmente posta de parte: Ulisses sem pejo havia passado 7 anos na ilha de Calipso (tem nome de gelado, se calhar foi por isso). Acrescentaria ao epíteto de "primeiro concerto assistido", o de "primeiro concerto assistido e de pé".


Herbert James Draper
Ulisses e as Sereias
1909

Galeria de Arte Ferens, Kingston-upon-Hull, Inglaterra

O primeiro Capitalismo
Segundo uma tese (Hauser, penso eu), o primeiro Capitalismo não surge com a Revolução Industrial, mas na passagem do Renascimento para o Maneirismo. A passagem de um século em que se privilegia o conhecimento, o Humanismo, o heliocentrismo coperniciano em detrimento do geocentrismo ptolomaico e do teocentrismo, para um outro que se inicia com lutas internas na Europa, com uma nova via na religião (o protestantismo), fez nascer aqui, entre o século XVI e XVII o paradigma da individualidade. O homem, substitui o Homem e há no cidadão comum um sentimento de cansaço face à religião, ao que ela preconiza e que não se adequa perante uma outra vontade que prefere uma relação directa com Deus em que vence o respeito e não o medo. O Maneirismo foi mais desprendido da religião, isto principalmente nos Países Baixos. A dimensão religiosa dá lugar à dimensão pessoal; as naturezas mortas não são um reflexo da grande natureza morta que é o corpo de Cristo na Última Ceia, mas antes uma “vanitas”, com recurso a elementos da vida quotidiana, que por sua vez denunciam a reivindicação da propriedade intelectual do artista sobre a sua obra.


[A ler com atenção o “Elogio do quotidiano nos Países Baixos”, de Tzvetan Todorov]

2 comentários:

AM disse...

mas minha cara beluga... isso agora, como dizia a outra, não interessa nada... :)
já viste a posta do contra-abaixo na GLQL em:
http://grandelojadoqueijolimiano.blogspot.com/2007/05/pastiche-ps-moderno.html
não consigo parar de rir

AM disse...

é pá não sei o que é que se passou
a posta desapareceu
mas que merda é esta?
censura na GLQL?