quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O Simétrico, Capítulo IV


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"Pousava com alguma precipitação, estendendo a braço direito na direcção do cabide, o chapéu-de-chuva dois anzóis à frente do chapéu de senhora e ao mesmo tempo atirava o saco com a bata para cima do sofá. Não tinha empregada, mas a casa estava impecavelmente limpa, como se nunca lhe tivesse sido tirado o plástico de protecção, como se acabasse de ser enxertada, isto porque o tempo que por lá deambulava era passado quase sem tocar em nada. A não ser nas plantas, mas para isso tinha reservado uma parte entre a cozinha e a varanda e isto em nada perturbava aquela arrumação programada. Quando arrumava, num dia previamente marcado no seu calendário mental e cuja mudança por um ou outro motivo lhe causava algum mal estar, irritação e até surpresa - pois nunca se imaginava nesse dia num outro local a não ser em casa -, deixava tudo de tal forma irrepreensível, que demorava muito tempo a sujar-se de maneira a ter de estipular outro dia na sua memória. Ficava assim liberto e sentia dessa forma ter cumprido um dever de grande importância, tanto que achava merecer uma recompensa e aí sim, saia para apreciar o que se passava lá fora. Embora achasse que o que lhe interessava, tudo o que o podia fazer feliz estava entre os elementos que compunham aquela arrumação e que interagiam com toda a harmonia, não conseguia deixar de sentir um fascínio por esse mundo de caos que começava para lá da janela.


Ao entrar, coordenava estes movimentos com o abrir do correio que tinha apanhado na porta da entrada na respectiva caixa de correio. Nunca esperava nada de extraordinário e quando lhe surgia algo de inesperado como uma carta de quando em quando de um parente muito afastado, ou uma promoção nova com publicidade cheia de cores e letras apelativas, notava um pequeno desagrado por sentir que havia alguém que não atribuía ao seu momento de refeição a importância de que ele estava certo, esse momento possuir. E quando finalmente todas estas amarras triviais haviam sido rompidas pela força da fome, descansava-a no prato de iscas com arroz de tomate, que preferia malandrinho, mas de que, por hábito inquebrável de preparar o almoço por volta das sete da manhã, via-se obrigado a abdicar. Fazia aquela refeição com todo o método exigido a uma última ceia: sempre o mesmo prato, primeiro o arroz já seco, mas ainda com a temperatura certa para uma fome que se recusava a esperar, e depois as iscas libidinosas no seu molho de cebolada, molho esse cujo brilho o enfermeiro espalhava gulosamente sobre o arroz, para o imaginar malandro tal como gostava e como de facto lhe sabia; o copo de vinho, em quantidade parca para uma refeição que durava sempre cerca de 30 minutos. E depois era a deliciosa repetição dos gestos: o desembrulhar do jornal sem o rasgar, o pousar do prato perto do tacho, em cima da boca do fogão, o servir-se com a grande colher – como se se tratasse de um instrumento maçónico – os dois passinhos que o separavam da mesa e que dava como numa dança, o puxar do banco com o pé, enquanto o resto do corpo se preparava para se sentar naquela superfície ainda em movimento, os dois talheres na mão esquerda, juntamente com o prato, o copo na mão direita e tudo junto ao mesmo tempo a assentar arraiais na toalha branca como uma grande festa de aldeia com duração indefinida."

(...)

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