quarta-feira, 31 de outubro de 2007

"quando só vês o sexo, não vês a pessoa"


Não sou feminista, mas este é um post sobre mulheres, sobre mulheres artistas. Provavelmente seria preferível falar sobre as mulheres artistas de hoje ou mesmo as pós-modernas, mas não me apetece e identifico mais relações entre as escolhidas e o meio envolvente do que as que me são contemporâneas. E para falar delas começo por falar de um homem, um homem do seu tempo artístico e um misógino do século XIX: Baudelaire. Era uma personagem excessiva que estava dividida entre o tempo que vivia (Realismo) e o tempo que se iniciava (Romantismo). E vive como charneira também entre o flanêur e o dandy, entre o que vagueia em busca da vida dos outros, num ócio e tédio mesmo dentro da abundância, e entre o esplendor gratuito. No século de Baudelaire há um retrocesso na emancipação feminina em parte devido à Revolução Francesa; as mulheres emancipadas eram de classes altas. A burguesia resultante da Revolução Francesa foi uma burguesia que procurou domesticar a mulher e circunscrevê-las aos circuitos caseiros. Esta tendência conhece o seu apogeu na época vitoriana, pois isto permitia que as mulheres não levantassem questões nem tivessem o seu papel fora do universo doméstico. Para Baudelaire a mulher tinha de se afastar da Natureza, para ser o mais atractiva e interessante possível, recorrendo à maquilhagem e ao lesbianismo que é uma fuga civilizacional, uma vez que a lésbica é a mulher que na teoria não procria. O ciclo de progressão das mulheres atingia o seu pico aos 13, 14 anos ou quando eram menstruadas. Depois disso avançavam para o casamento e para a gravidez geralmente indesejados e quem pretendesse fugir a esse destino e tivesse manifestações de génio, era vista como uma mulher mascarada de homem. A própria noção de génio é masculina e por isso não se pode coadunar com o universo feminino. Ao ver as mulheres desta forma, com múltiplas faces, Baudelaire ajuda a arte e as mulheres do seu século a serem mais moldáveis e acima de tudo, mais verdadeiras com a realidade. Na realidade as pessoas têm inúmeros alter-egos e podem ser muito diferentes num só corpo.


As guerras napoleónicas tinham feito muitas vítimas entre a população masculina e as mulheres sem recursos, pois dependiam dos homens começam a procurar empregos principalmente como criadas e amas. Sem ter direito a uma carreira, as mulheres de boas famílias casavam bem, as mulheres operárias trabalhavam e a classe média optava pela carreira artística que entre as várias profissões possíveis até nem era muito mal vista, excepto no que diz respeito ao bailado e ao teatro. Para as mulheres havia poucas alternativas a não ser a arte: a final de contas elas desde sempre tinham pintado em casa e bordado… Daí para a pintura profissional era um passo fácil, natural e necessário.


Há várias mulheres que ilustram a história da arte, excluindo as amantes e as modelos. Mulheres que realmente contribuíram para a arte. Uma delas foi Artemisa Gentilleschi, filha de Gentilleschi que não teve uma existência muito pacífica. Tal como o pai, pintava mas talvez por partilhar o espaço e a área de saber com muitos homens, Artemisa foi violada por um aprendiz do pai. O julgamento foi ainda mais penoso, com acusações para o próprio pai e para a vítima: a sua sensualidade desculpabilizaria o culpado. Outra pouco conhecida mas que não levanta controvérsia foi Sofonisba Anguissola, filha de um nobre que deu aos filhos uma educação liberal. Pintava em casa, mas com mestres, tinha muita liberdade de movimentos, fez inúmeras viagens e acaba por entrar na corte espanhola não só como dama de companhia de Isabel de Vallois, mas também como pintora.


Artemisa Gentilleschi


Sofonisba Anguissola


Já no século XIX há três mulheres que foram muito importantes para a pintura: a russa Marie Bashkirtseff, Berthe Morisot e Suzanne Valadon. As três são contemporâneas mas seguem caminhos diferentes na pintura. Marie é uma figura atípica, uma intelectual rica que escolhe um caminho mal definido entre o fora e o dentro, nos limites daquilo que era aceitável para o tempo em questão. Era uma mulher demasiado inteligente para não perceber que a sua pintura era perturbadora uma vez que abordava a questão da igualdade dos sexos, numa altura em que às mulheres estava vedado o ensino artístico com recurso a aulas de modelo de nu. Morreu com apenas 26 anos mas na altura era muito apreciada mesmo em Portugal. O que resta da obra dela é pouco mais do que um diário iniciado quando a pintora tinha 13 anos e que é um fresco do século XIX e mostra um pouco da sua vida. Marie chegava sempre acompanhada por um lacaio negro que lhe segurava as roupas à medida que ela ía caminhando e as ia despindo. Vivia pois uma vida antagónica, uma vez que usufruía das mais valias da vida aristocrata, mas como tinha uma forte consciência social, discutia política a apoiava a igualdade entre sexos.


Marie Bashkirtseff


Berthe Morisot por seu lado é uma figura tipificada: a jovem burguesa, mãe, que borda e se dedica à casa, é recatada e doméstica, casa com um irmão de Manet e não partilha da vida boémia dos absintos de Degas. As suas pinturas abordam invariavelmente o tema da maternidade e ela, que leu o livro de Marie, sabia-se oprimida nessa sua condição burguesa, acomodada. Mas se lhe damos hoje alguma relevância era porque o fazia como os pintores do seu tempo: observava a realidade, expunha o que via, fazia-o com a técnica própria de todos eles e no fundo, ao fazer isto, era uma mulher pintora dentro dos Impressionistas.


Berthe Morisot


Suzanne Valadon de quem já muito se ouviu falar até por causa do filme de Toulouse Lautrec, penso eu, era uma boémia. Filha ilegítima, cedo aprendeu que o berço condicionada as escolhas pela vida fora. Cresceu na rua mas como era muito bonita tornou-se artista de circo. Abandonou o circo por causa de um problema físico e tornou-se modelo (e também amante, diga-se) dos pintores para quem posou. Foi graças a eles que aprendeu a pintar; com Degas aprendeu a observar, por exemplo e na sua obra estava patente a vida boémia que vivia bem como uma certa irreverência. Teve um filho que também se tornou pintor, mas morreu sem escolhas, velha e apenas com o consolo de vagabundos.


Suzanne Valadon

Todas procuravam a dignidade profissional, o reconhecimento do seu trabalho e a maior parte não o conseguiu. Ainda hoje as mulheres pintoras até à segunda metade do século XIX estão esquecidas ou são olhadas de lado. Ainda hoje, falando no geral, a obra de uma pintora não é tão valorizada quanto a instalação ou a vídeo art. Há uma busca não complacente pelo novo e se possível, incompreensível. Porque aquilo que não se compreende passa para a esfera do místico e como não se fala do divino, aprecia-se apenas, a arte de hoje flutua ao sabor dos mercados e dos desinteressados.

3 comentários:

João Barbosa disse...

a frase «quando vez o sexo não vês a pessoa» não é sobre a homossxualidade? cuidava que sim

Belogue disse...

não só. na campanha, o cartaz relativo a esta frase tinha um rapaz e uma rapariga. num outro que dizia "quando só vês a diferença, não vês a pessoa" aparecia uma pessoa com uma deficiência. A campanha era sobre a intolerância.

João Barbosa disse...

ok... é porque só vi um outro ou vi mal (a idade não perdoa)